"Não haviam becos sem saída que não fossem magnéticos. Tudo naquela cidade parecia caótico e surreal. A. contemplava da janela do bonde a multidão que ressoava em ritmo frenético e silencioso. Desceu um ponto antes, queria o sol na cara e que o suor do corpo se espalhasse por inteiro.
Não há melhor companhia, pela manhã, do que um cigarro. Chegara a esta conclusão, um pouco antes de olhar pela enésima vez o relógio. Nunca reparara como 5 minutos, ou trezentos segundos, podem demorar a passar. O tempo sempre lhe escorreu pelas mãos. De modo que nunca soube lhe dar valor. Imaginava sua juventude como algo inesgotável. Dessa forma, jamais temeu a velhice.
Chegara como de costume e não precisava mais dizer seu nome, nem a que viera. Subindo as escadas, ia desenrolando o lenço preso ao pescoço, deixando o cabelo cair de lado, onde se podia ver marcas deixadas pelos colares pesados. Carregava-os ora por querer sentir-se vista, ora por castigo.
Pela fresta da porta, apenas a luz fraca do corredor, cortando a atmosfera esfumaçada. Nada mais. Os ponteiros do relógio lhe torturavam com sua passada imutável. Não conseguia se concentrar. Abrira um livro, cantarolara uma música. Abriu a garrafa de black label, já perto do fim; desistiu. Acendeu mais um cigarro. A única coisa que lhe dava algum conforto.
Empurrando a porta entreaberta, flagrou cena que imediatamente soube que não era por acaso e que nem se esqueceria. T. estava sentado na poltrona, com as pernas afastadas como os homens fazem, lendo um exemplar de Factotum. Assim que percebeu sua chegada, levantou o olho e A. sentiu uma leve pontada, um golpe, uma ferida que não cicatriza. Sabia que seu tempo seria indeterminado para entender porque esta cena é daquelas que ficam.
A lufada de ar trazida pela abertura da porta lhe empurrou para fora das entrelinhas de um ensaio que analisava as decisões dos personagens de Tarantino, à luz da deontologia kantiana. Qualquer cigarro seria desnecessário. Gostava tanto de ser com A., que mesmo o simples ato de fumar um cigarro passara a ser muito melhor, se feito com ela. Um dia se perguntaria se a melhor companhia pela manhã seria um cigarro ou o colo dela. Mas só depois, talvez.
Seus pelos gritavam ao quererem sair do botão entreaberto da camisa. Nenhuma palavra quase nunca é dita. Ataque bruto e inocente, selvagem e harmonioso, incólume e perdido. A., quando pensa em seus momentos de delírio e prazer extremo ao lado de T., entende o verdadeiro sentido de seu âmago. Sabe que ele é um lobo. Mas o que seria um lobo? No alemão, é wer=ser e wolf=lobo. Não haveria de ser meia-noite e nem lua cheia para tal metamorfose".
Não esperou virar a página, ou mesmo o último trago. Sequer esperaram estarem totalmente nus. Amaram-se no sofá, envolvidos na atmosfera pesada, de fumaça e de saudade. O suor que tomava todo o corpo de A. deixou T. ensopado, sua camisa já transparente grudada em seu corpo, e seus pelos já sentiam o roçar dos seios dela, macios, mornos e entumecidos. Sentiu seu mamilo salgado de suor ao levá-los à boca. Os mesmo cinco minutos, ou trezentos segundos, que tanto se estenderam antes da chegada dela, se desfizeram em suor, salivas e semên. Passaram rápido, na enternidade vivida na junção daqueles corpos que pareciam se encaixar em cada curva possível.
Não se viam há apenas dois dias. Mas esse intervalo de tempo parecia ser mais do que o suficiente para arar, semear, germinar e colher o desejo que alimentavam um pelo outro desde o primeiro dia em que se viram. Fumaram o mesmo cigarro, já no chão, mas ainda com alguma roupa no corpo, uma calça pelo joelho e uma calcinha posta para o lado. Fumaram o mesmo cigarro, após fazerem amor, talvez o único momento de rotina possível em seus encontros”.