segunda-feira, 22 de abril de 2019

41. Quais são os seus hobbies? (*)

Cronometrar o tempo que gasto pra completar as palavras cruzadas e decorar as capitais dos países da América Central não são nem a ponta do iceberg das coisas que me dão prazer nesta vida. Até agora eu só te disse os meus passatempos mais inocentes, os que a gente pode contar pra qualquer um, mas acho que agora, na altura da conversa em que estamos, já é hora de te contar sobre aquilo que me dá prazer de verdade, um prazer físico, sobre aquilo que me faz esticar o corpo todo de tanto deleite, que me faz querer parar o tempo naquele momento único, que faz meu coração querer bater fora do corpo… Sim, sim, senhora… não existe nada mais prazeroso nesta vida do que enfiar um cotonete fresquinho, recém-tirado da embalagem, bem lá no fundo do buraquinho do ouvido! Ah, que delicia… quando aquela pontinha branca entra bem devagarinho e a gente vai fazendo umas voltinhas com ela bem devagar e vai enfiando cada vez mais, sempre aos pouquinhos, até ficar bem lá no fundo e a gente sentir uma coceirinha gostosa lá dentro, que às vezes até dói um pouco, é verdade, mas é uma dorzinha gostosa, uma dorzinha na medida certa, que a gente reluta até o final pra parar de ter. Isso é realmente muito bom, bastante deleitoso, e dá vontade de fazer todo dia, toda hora… O melhor é com cotonete mesmo, que tem aquela rigidez natural na haste, sabe, e também aquela maciez que afaga na ponta. Mas na hora do desespero, quando o cotonete acaba e a gente não tem outra coisa, ou quando a gente está num lugar como esse daqui, longe de um cotonete, daí pode ser qualquer coisa pontiaguda mesmo, de preferência uma boa tampa de Bic como aquela. As de Bic são as melhores porque têm esse formatinho arredondado na ponta, perfeitamente anatômico, parece que fizeram pensando nisso, pensando na coceirinha gostosa que isso é capaz de fazer no ouvido de alguém. Não faz a massagenzinha que os cotonetes são capazes de fazer, ah, isso nada consegue igualar, mas cumprem bem o seu papel e não machucam tanto quanto as pontas de lápis, os grampos de cabelo ou os clipes desmontados… que cara é essa, senhora?

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E tem hora, minha amiga, que pra coisa ficar ainda mais gostosa, eu fico alguns dias sem cutucar. Sim, uns quatro ou cinco já está ótimo, pra coceirinha ir só aumentando e a cera ir acumulando. Daí quando enfim a gente enfia o cotonete de novo lá dentro, a pontinha entra deslizando porque está tudo mais lubrificado pelo tempo sem mexer. Isso é prazer que não tem igual, é mais prazer do que prometem os anúncios de acompanhantes no jornal, tenho certeza disso. O problema é quando dá errado ou quando a gente exagera um pouco, sabe… porque daí é sofrido.

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Sim, eu já sofri um bocado com esse meu hobby e posso te contar em detalhes…


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Como não precisa de detalhes? Isso aqui é uma entrevista de emprego ou o quê?! Sim, tive muitos sofrimentos com esses azuizinhos e o mais leve deles aconteceu logo que descobri esse prazer maravilhoso no banheiro da farmácia. Isso mesmo, naquela época, eu ia escondido no banheiro muitas, muitas vezes por dia mesmo – tudo por causa dessa brincadeirinha gostosa – e minha chefe devia achar que eu sofria de uma disenteria violenta, mas o caso é que eu ainda era bastante inexperiente nisso e girei tantas vezes e com tanta vontade o cotonete dentro lá do canalzinho, que quando fui tirar, só veio o palito. Sim, eu estava lá escondido no banheiro, completamente surdo de um ouvido e com um algodão xuxado lá dentro. E nada que eu fizesse conseguia tirar aquele algodão dali. Eu tive que passar o dia todo sem entender o que os clientes falavam, pedindo pra que repetissem tudo e, claro, andando meio de lado pra ninguém reparar que eu tinha um algodão no ouvido e que devia parecer muito com um cadáver recém-promovido ao mundo dos mortos.

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Ai, ai, senhora… aquilo só foi sair em minha casa, mas pra isso tive que contar pra minha avó, que já estava achando muito estranho eu estar mais surdo do que ela. Daí ela me ajudou com uma pinça e me fez prometer que nunca mais eu ia usar cotonetes e que ia limpar os ouvidos apenas com a ponta úmida das toalhas, que estava mais do que suficiente e blá, blá, blá, que um dia eu ainda ia furar o tímpano e pegar uma infecção lascada e be be bé e essas coisas todas que falam todas as avós que querem nos privar dos verdadeiros prazeres da vida. Mas o pior é que a velhinha estava certa, desgraçadamente certa. É incrível isso, mas tudo o que eu gosto nesta vida é ilegal, é imoral ou me dá infecção no ouvido.

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Daí que ter infecção no ouvido virou uma rotina em minha vida, já foram três nos últimos cinco, seis anos. E não queira a senhora ter uma infecção de ouvido, ainda mais depois de perder a linha e machucar tanto o buraquinho com as coisas pontudas e não necessariamente limpas que há nesta vida. É uma dor de outro mundo, uma dor que faz a gente repensar se tanto prazer vale a pena. É uma dor que faz a gente prometer sempre que nunca mais vai usar cotonete e que vai seguir todas as recomendações higiênicas que sua prudente avó já lhe ensinou. Até que um dia a dor passa, até que um dia depois de tomar uma cartela inteira de antibióticos e todos os analgésicos diferentes que encontra pela frente, a dor passa. Sim, e também você para de vazar pelo ouvido e de sujar todas as fronhas da casa com aquele líquido amarelo avermelhado que nunca imaginou que seu corpo produzia. E quando até mesmo essa sensação de mijar pelo ouvido passa, quando tudo volta ao normal, a gente imediatamente esquece tudo e começa a desejar por aquelas hastezinhas novamente. E mesmo que você resolva se boicotar e não comprar mais cotonetes, pra não ter que ter isso tão à disposição, seus olhos te traem e começam a detectar todos os objetos minimante pontiagudos e finos o suficiente pra que caibam em seu ouvido. Sim, todo objeto pontiagudo começa a ficar bem interessante e daí começa tudo de novo, até a próxima infecção dos infernos. Porque sim, senhora, ela certamente virá…

*Trecho de "Curriculum Vitae", meu próximo livro, a ser lançado em breve pela Editora Patuá.

Um comentário:

  1. Maravilhoso, Felipe. Dei muita risada, meu amigo. Vou adquirir seu livro "Curriculum Vitae". E assim que passar esta pandemia, quero seu autógrafo. Beijo em seu coração.

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