segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Registro Geral

 



O que me exalta nas fotografias é o roubo — aquele roubo abrupto, resguardador, defensivo — às forças expansivas do tempo. Na primeira, o olhar de quem teme o caráter inaugural de todas as coisas. Na primeira, eu nada sabia de ti. Será possível que a criança já tudo saiba?Você parando na estrada para que eu pudesse descer e vomitar o café da manhã. Eis a única lembrança que tenho de ti. Na segunda, a velhice prematura, o cansaço que só os jovens conseguem ter. Porque, pensando, eu era velho, velho, os meus anos acumulavam-se num tempo indeciso, e estavam cheios de coisas monstruosas. Na terceira.... na terceira sim eu sabia de ti, na terceira, sim, tu estavas. Era eu, mas também eras tu. Um certo olhar resignado. Os caminhos que trilhavam tua face, já insinuando-se na minha. Os cabelos que inexistiam em tua cabeça principiando a inexistir na minha. Na terceira, já era indisfarçável. Na primeira, um rosto plano, sem mácula, um olhar de quem parece querer fugir, de quem ainda está por se habituar, de quem não conhece todas as instalações, de quem ainda precisa da hospitalidade de anfitriões. Na segunda, pareço buscar por um inimigo, a guarda sempre levantada à espera de um combate. O mundo mal se apresentou e parece já ter se exaurido. Cansaço. Na segunda eu sinto cansaço. Cansaço e raiva. Tampouco havia tu na segunda. Apenas na terceira. No princípio, um ódio por cada sinal da passagem do tempo. A decrepitude é para os outros. Mas só na terceira tu estás. Só com os primeiros sinais de minha decrepitude é que tu apareces. E é na decrepitude que me aproximo de ti. Tu, a quem eu já conheci decrépito. Tu e tuas marcas difusas em minha vida. Tu que nunca quis, sempre temeu deixar qualquer vestígio em minha vida, nunca pôde ter controle sobre as marcas que deixaria na terceira, em cada poro de minha face. Em cada esgar, em cada sorriso. E justo na terceira, a primeira em que tu não podes alcançar, em que teu tempo já não intersecciona com o meu. As idades apoiam-se na sua própria memória. Teu nome não está em meu registro geral. Teu rosto sim. Na terceira, tu estás, com tuas marcas indeléveis, como a dar uma piscada cúmplice aos que ainda lembram de ti. O quanto de ti definiu o lugar que ocupo no mundo? O autobiógrafo é a vítima do seu crime.
 
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Nota: Os trechos em vermelho são extraídos de "Apresentação do rosto", de Herberto Helder, romance que motivou o presente texto.

sábado, 20 de novembro de 2021

Máscaras, vacinas e ansiedade

Caso escrevesse hoje, é bem provável que Machado de Assis fizesse uma referência a passar o dia com a máscara, para sentir o prazer de tirá-la ao chegar em casa. Seria o substituto moderno para o alívio de descalçar as botas no fim do dia, como fazia o personagem Brás Cubas, no fim do século 19.

Depois de mais de um ano e meio, cobrir o nariz e a boca é quase tão corriqueiro quanto calçar um par de sapatos. Mesmo com o controle da Covid-19, sair na rua sem máscara é quase como sair descalço. Causa estranhamento, sensação de fazer algo errado, e ao chegar em casa vem o alívio de descobrir o rosto e sentir o ar fresco inundando os pulmões ao mesmo tempo que refresca o rosto, úmido pela respiração represada.

Em um país que chegou a registrar mais de quatro mil mortes por dia, é um alívio reduzir a média diária para pouco mais de duzentas. Por outro lado, a ansiedade acumulada no período de quarentena faz aflição disparar diante do retorno à vida, que nunca foi exatamente normal.

Uma coisa é passar rápido pelo mercado, pegar o mínimo necessário e correr de volta para casa, outra, bem diferente, é voltar a encarar uma reunião presencial, cara-a-cara com pessoas de máscara abaixo do nariz, ou frouxas o suficiente para enxergarmos a respiração fluindo, quase livremente, pelos vãos laterais.

Só de imaginar os potenciais vírus coronados voando livres pelo ambiente, a respiração acelera, a máscara umedece, os óculos embaçam e a tranquilidade de ter uma média de mortes em torno de duzentas se transforma na realidade de mais de duzentas pessoas mortas em um único dia, por uma única causa.

Como o inconsciente vaga livremente pelos riscos de contaminação, resta um refúgio racional. O Átila Iamarino confirmou que a situação está melhor e que as vacinas são eficientes. Ele até cortou o cabelo. Se o Átila falou, está falado e ponto final. Mas ele também disse que nenhuma vacina é 100% eficaz e que, apesar de controlada, a pandemia ainda exige atenção. Lá se vai a racionalidade.

Se por um lado a pandemia é uma tragédia, potencializada quando somada à tragédia política brasileira, por outro é admirável que em menos de um ano o mundo já tinha vacinas eficazes contra o vírus. Curioso mesmo é que toda essa eficiência da medicina ainda não tenha desenvolvido um remedinho para a ansiedade. É vida que segue – de máscara.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

PARAFUSOS

São Paulo, quinta-feira, 18 de novembro de 2021.


- parafusos - Cristina Santos - post 19 - Blog das 30 pessoas - 


título: PARAFUSOS 





Oiê, Pessoal. 💜
Aproveito a data de hoje para fazer um convite muito, muito, muito importante. Na próxima quinta-feira dia 25/11/2021 estreia a websérie infanto-juvenil: PARAFUSOS, que escrevi com o amigo e parceiro de escrita Tadeu Renato. Toda a equipe do projeto é lindamente mágica, por isso é um trabalho tão especial. A realização é do @Núcleo.Atômico 💜
Segue uma matéria com todas as informações. 
Aguardamos vocês. 
Até o próximo post.
Beijos,
Cristina Santos 
💜










terça-feira, 16 de novembro de 2021

Máquina de escrever

Foto: Tadeu Renato


Há aqueles dias em que as mãos querem transformar experiências em palavras grafadas em tela e papel, mas é apenas um impulso muscular. As palavras, elas mesmas, não desejam surgir à toa, preferem a permanência do silêncio. É compreensível esse distanciamento de ruídos e manchas, a música interna escolhe se dar em afetos tácitos com um cachorro vivo do que escrever qualquer coisa que seja. Há também os instantes em que as palavras de dentro apenas querem visita e escutar história alheia.

Estavam conversando muito alto, não se viam desde antes do natal e o grupo estava saudoso das trocas. Eram 11 senhoras que se reuniam no salão de uma ONG para compartilhar seus cansaços. Eu estava ali como orientador de uma oficina de escrita e memória, encontro que de antemão teve rota alterada ao constatar que a maioria delas não sabia ler nem escrever. Assim, o espaço se tornou um momento de escuta, eu conduzindo disparadores para que puxassem do limbo da memória narrativas pessoais de horas passadas. Gostava imensamente de ouvir experiências tão diversas, imaginar aquelas pessoas habitando outro tempo e espaço, outras formatações de seus corpos. Com o tempo aprendi a notar a maneira como cada qual contava algo, os gestos, as entonações, o titubear diante de acontecimentos traumáticos, mas nunca desistindo de continuar. Entre elas, havia uma idosa que discorria pouco, com uma entonação diretiva que lhe dava um aspecto de constante irritação, embora as frases que dizia contrariavam a melodia da fala. Um dia uma colega de grupo perguntou sobre seu problema de nervos que a fazia tamborilar os dedos nas próprias pernas. Dona Olinda, a senhora das mãos dançarinas, explicou que era um vício antigo, resto de enredo profissional. As senhoras foram guardando seus sons: não era sempre que surgia a oportunidade de saber algo mais sobre a taciturna Olinda, que começou após um pigarro:

    - Quando moça, mãe achou por demais importante e bonito que eu aprendesse datilografia. Lá fui decorar aqueles botões todos. Dava uma aflição medonha, porque aquilo lembrava minha bisavó. Ela morava com a gente, era muito magrinha e tinha muita dor nas costas. Me pedia o tempo todo pra apertar os lados dela. As teclas da máquina de escrever eram iguais as costelas da minha bisa, até o estralo era igual.

        As senhoras riram da inusitada comparação, porém a Olinda rascunhou um sorriso com os dentes cerrados e continuou:

     - Sabe que eu era a mais ligeira do curso? Queria tanto acabar depressa com aqueles tapas, aquele barulho de máquina gemendo, que acelerava e terminava tudo num baque, nem me dava com as horas. De assim foi que acabei escrivã num escritório. Era lugar de fiscal de terra, gente que ia ver se tinha alguém que ainda vivia feito escravo. E tinha, viu? Ui, como tinha.

           Uma jovem entrou no salão trazendo café e biscoitos, fazendo com que as ouvintes dispersassem e seguissem com suas conversas sobre um desastre que estava em todos os noticiários por aquela época. Ficamos eu e dona Diva, uma que estava em seu primeiro encontro e ainda não tinha intimidade para boas conversas fiadas. Continuamos observando a datilógrafa, que mantinha em suspenso a respiração de um evento que não havia terminado. Ela entendeu nossa curiosidade e seguiu:

             - Problema foi que os dedos deram de me enganar. Toda vez que alguém me ditava um relatório, algo em mim virava nuvem e não sei o que me dava, os dedos disparavam e eu nem percebia o que estava fazendo. Quando relia o texto, não tinha escrito o que passaram: tinha criado uma história, cheia de palavras que não conheço, com pessoas que não existem, situações que não foram as que o fiscal contou. Cheguei até a ir numa psiquiatra, mas ela disse que não tinha nada de errado, aparentemente. Com o tempo foi piorando. Minhas mãos não obedeciam mais ao que eu escutava, elas queriam batucar outras vidas, escrever fábulas e umas estranhezas que nunca entendi.

             Dona Olinda coçou a parte de trás da orelha, suspirou alto e se levantou para pegar um copo de água. Voltou seu testemunho antes que o corpo se acomodasse na cadeira:

       - Comecei a ter um medo tão grande da máquina de escrever. Era a mesma inquietação que eu sentia quando ia no terreiro de uma minha tia. Ficava tonta, o coração acelerava, o corpo se deixava levar pelo ritmo das teclas. Olha, não vou dizer que nunca fui de mentir, que mentirinhas estão no ar que a gente bota pra fora e nem repara. Mas assim, de mentir aos metros, de propósito, nunca me inclinei pra isso. Então precisei largar o serviço de datilógrafa e fui ser guarda de trânsito. As mãos só tinham que se ocupar em dizer: pare.

            A mesma jovem que trouxera os biscoitos proferiu o fim do encontro. Uma van esperava para deixar as senhoras em suas casas. Dona Olinda se despediu repetindo o sorriso trancado e saiu, engatando uma conversa lacônica com uma colega. Dona Diva se levantou com um pouco de dificuldade e antes que se deslocasse rumo à porta, sentenciou:

                - Acho que é tudo invenção.


segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Home sweet home

E aí galera?

Já faz quase dois meses que estamos em Edinburgh. Nos primeiros 10 dias, ficamos confinados num quarto de hotel, como contei no mês passado (leia aqui). Saímos do hotel e pegamos um táxi até um apartamento que reservamos pelo Airbnb. Planejamos ficar 30 dias nesse apartamento e então mudarmos para uma casa mais definitiva.

O apartamento fica numa localização excelente, bem em frente para um parque lindo. Na foto abaixo, temos a vista de uma das janelas do apartamento: de uma lado o Meadows Park, do outro a Bruntsfield Road, vários prédios e um arco-íris lindo. Aliás, a gente vê bastante arco-íris aqui. Do apê, conseguíamos ir caminhando (25 min) para os principais pontos da cidade, como Princess Street, Castelo, biblioteca da Uni dentro outros. 




O apartamento é bem espaçoso! A gente gostou muito de ficar lá. Mas infelizmente, esse padrão de apartamento numa localização como essa está muito acima do nosso orçamento no momento.

Encontrar um lugar para morar foi uma missão um pouco desgastante para a gente. Tínhamos a questão do prazo apertado (apenas 30 dias). Além disso, o mercado imobiliário em Edinburgh é enlouquecedor. Para cada imóvel disponível para alugar devem ter ao menos 10 candidatos interessados. E você literalmente tem que se candidatar, passar por um processo seletivo. O proprietário escolhe para quem ele quer alugar.

A gente descobriu que ao ver o anúncio de uma imóvel interessante, enviar e-mail não basta. Pois em questão de horas o anúncio já saiu do ar porque o número de interessados é tão grande que os corretores de imóveis decidem seguir com os primeiros a manifestarem interesse. Então, assim que anúncio vai para o ar, é necessário pegar o telefone e ligar. Ligar imediatamente, pois se deixar para depois, perdeu!

Passamos duas semanas muito estressantes procurando casa das 9h-17h de segunda a sexta. Visitamos umas 15 casas, nos candidatamos para umas 20 ou mais até recebermos um convite para alugar. Conseguimos uma casinha bem aconchegante num bairro super residencial e mais afastado do centro. Achamos que para a nossa primeira casa em Edinburgh está de bom tamanho!

Também precisamos de uma espécie de fiador, que necessariamente tinha que ser alguém do UK. Por sorte, tínhamos um colega muito gentil que se ofereceu para ser nosso fiador. O contrato com a imobiliário foi bem tranquilo e a mudança também.

Nossa primeira grande missão foi encontrar a casa. Essa concluímos com sucesso, ufa!!! Já faz duas semanas que saímos do apartamento maravilhoso em Bruntsfield e nos mudamos para a nossa primeira casinha aqui em Edinburgh. Estamos felizes aqui.

Agora a segunda grande missão é encontrar trabalho para o Lucas. No próximo post, contarei um pouco sobre essa segunda saga. 

Até breve!


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quinta-feira, 4 de novembro de 2021

O que está acontecendo

Estou parado no cais 
Onde vivia minha paz
Onde silêncio ainda fala
O que barulho não faz

Eu tava olhando para trás 
Caí de costas no mar 
Afoguei no escuro para respirar

Por sorte aprendi boiar 
Roderick Thorp duro de matar 
Tentaram me apunhalar 
Sei que vou me curar

Tenho corpo fechado, ouço uma voz
Sangue sempre quente, cabeça feroz
Sigo na luta por nós 
Quando eu caí tava a sós
Eu e meu ego, my boss

Ainda penso em viver 
Ainda vejo os faróis 
O mar ainda é algoz
O vento ainda leva minha voz 

Respirei fundo, melhor
Mergulhei, calmo pra voltar nadando 
Beirando a orla, renasci chorando 
Vocês que lutem para viver sorrindo 

Esquece, não sou mais menino 
Me reencontrei no espelho, 
Sim, estava sumido 
Via um reflexo do invisível 

Vivo questionando tudo
Abraçando a dor do mundo 
Como Banksy pintando muro
Lendo Bauman no lago sujo
Eu e Amy num mar turvo
Rehab numa house club 
Aproveitando o nada 
como se tivesse tudo
como se pudesse tudo 

Às vezes me engano muito 
De vez em quando aposto,
Venço, curto 
Se o longa ficar caro 
Lanço um curta

Não é pelo Oscar, juro 
Querem um campeão para tudo 
Todo mundo é fraco ou duro
Se faz de cego, surdo e mudo

Fantasmas sussurram segredos
A vida não acaba no escuro, amigo
Você anda tão desaparecido
O que está acontecendo contigo?