quarta-feira, 3 de junho de 2020

A velha e o botão


Era uma vez uma velha, que de velha ficou sozinha e de sozinha ficou louca. Ela morava numa casa que, certamente, fora parecida com uma num passado bem distante. Essa casa ficava perto de uma central de Call Center e ao lado de um conjunto residencial de prédios médios.

A velha não saia de casa já fazia muito tempo. Uma meia sobrinha visitava-a uma vez por semana para trazer suprimentos básicos e a visita não se estendia por mais de meia hora (deve ser coisa de meio parente com meia culpa). Nesses últimos tempos, a visita, que já era curta, passou a ser só mais um serviço de delivery e, para velha, era como se nada tivesse mudado.

Quem circulava por ali, moradores e trabalhadores, não viam a velha, mas a ouviam, fosse da calçada, durante os 15 minutos de pausa, fosse das sacadas, ao longo de mais um dia de trabalho remoto, fosse durante as rápidas idas ao mercado. Isso porque, a velha louca travava longos diálogos, em alto e bom som, com “quem” quer que fosse. Naquele dia de junho, seu “quem” era um botão.
- Quem te viu quem te vê hein, seu atrevido! Era todo prosa e agora tá aí, jogado no canto. Tá velho feito eu, hihihi.

- Te lembro naquele terno de linho branco! Ficava tão charmoso, tão elegante... Agora não te cabe mais, redondo desse jeito, como a calça vai entrar? Também, não pára de comer... Virou um come/ dorme.

- Que foi? Que tá me olhando com esse risinho sonso?

- Gorda, eu? Olha o respeito, seu velho bocudo! Pra seu governo eu ainda tô muito bonita, mesmo mais cheinha... eu já sou velha, né?! Que você queria, a Martha Rocha toda a vida?

- Eu era muito bonita, você lembra? Tinha aquele cabelo enrolado, cheio... Tava sempre arrumada...

- Que foi? Que tá com esse zoinho apertado? Tá triste? Fica triste não! A velha te cuida, viu? Você tá bonitão ainda, sempre foi, né? Quem resiste esse zoinho...

- Escuta! É o sinal! A molecada já vai voltar pra fábrica... Lembra da fábrica?

Era mesmo o sinal. Os atendentes precisavam voltar. Apagaram seus cigarros, engoliram seus cafés e entraram. Mas a velha continuava a falar, sem se importar com a audiência que, naquele instante, passava a ser menor. Ela não se dava conta da plateia porque era muito velha e de tão velha acabou louca e de tão louca acabou sozinha.

Ela não se dava conta da plateia porque já era muito sozinha e de tão sozinha envelheceu e de tão velha enlouqueceu.

Ela não se dava conta da plateia porque já era muito louca e de tão louca ficou só e por estar sozinha envelheceu, sem se dar conta. 


Botão de massa ouro velho e prata velho - Produtos - Megamix



6 comentários:

  1. Muito bom Aninha!!! Um dia viu escrever assim. Você tem um futuro brilhante!Bjs

    ResponderExcluir
  2. Muito legal, Ana. Sempre um bom jogo de palavras.

    ResponderExcluir
  3. Que belo e forte e triste. E que síntese na construção das imagens! Parabéns!!

    ResponderExcluir
  4. Doçura em palavras duras.Que alerta! Parabéns Ana e muito obrigado! Por outros assim!!!

    ResponderExcluir
  5. Amei, Ana!!! Adorei o jogo de palavras também!!

    ResponderExcluir