sábado, 16 de outubro de 2021

Assaltos


O Ladrão - gravura de Osvaldo Goeldi
A conversa já tinha passado do ponto de novidade e repetição, caindo no abismo do silêncio. Bebiam na calçada, as máscaras penduradas nas beiras das cadeiras, os olhos se jogando em outras direções. O garçom pescava em pé, esperando os últimos fregueses terminarem para que pudesse voltar ao quarto apertado que dividia com outros colegas de turno. Enxugou as mãos no avental e decidiu contar mais uma vez o número de garrafas vazias no deposito. Foi nesse instante que um homem se aproximou da mesa e anunciou o assalto, o que foi o motivo para que o Gerson despertasse do poço da embriagues e lembrasse:

- Uma vez fui assaltado só porquê não ouvi minha intuição.

Os demais se inclinaram em sua direção, encheram os copos, procuraram pelo garçom para mais uma rodada. Como não o viram, voltaram ao Gerson, abstraindo a presença do assaltante.

- Estava caminhando ali perto da estação e vi dois caras vindo em minha direção. Uma voz me disse: “eles vão te assaltar”.  Apertei os olhos e o que mais dava para apertar e passei impávido entre os dois, que nem sequer me notaram. Olhei pra trás pra ver se estavam me observando, mas como não era o caso, suspirei.

O assaltante fez mais uma vez seu refrão, mostrando a arma que carregava por baixo da blusa. Sua voz saiu fraca, como se aquela fosse sua estreia na profissão. O Mário pediu um segundo e lançou um hã? ao narrador.

- No que voltei a caminhar, vieram dois jovens e disseram: iug oiuhy uh i ij.

- O quê?

- Foi o que eu perguntei: o quê? E eles repetiram: iug oiuhy uh i ij. Aí o meu vício de fonoaudiólogo quis que eu respondesse: articula melhor, mas vi a faca e entendi. Pediram a carteira, só que eu me encontrava zerado, estava de passagem, dando um tempo na hora do almoço. O maior me olhou bravo e falou alto: iug oiuhy uh i ij.

- O quê?

- Foi o que eu perguntei: o quê? E ele repetiu: o celular, porra. Eu tinha sido roubado recentemente, então andava com um celular meio podre, muito usado, preso com fita isolante. Entreguei e os dois saíram correndo. Deram uns seis passos e voltara atrás: vá se fuder. E devolveram minha velharia.

Brindaram. O assaltante pegou os celulares que estavam sobre a mesa, informando que com ele seria diferente, que com ele não tinha história. O que foi o mote para que o Nove (apelido de Ivanov) começasse:

- E eu que fui assaltado duas vezes pelo mesmo ladrão?

Os dois da mesa mais o assaltante suspenderam a respiração e miraram a atenção sobre o Nove, que molhou o bico e prosseguiu:

- Era moleque, tinha acabado de perder meu primeiro emprego, que era um tempo de contrato. Vinha calado no fundo do ônibus, pensando em como arranjar uma grana pro cinema, quando um homem sentou do meu lado e perguntou se conhecia alguma delegacia no caminho daquele ônibus. Eu estava distraído, pensando uma besteira qualquer e respondi que não. Então ele perguntou onde era o ponto final e se eu desceria lá. Quiser ser solícito e fui retribuído com a informação: acabei de sair da cadeia, tenho uma filha pra criar, não consigo trabalho e vou fazer uns corres. Gelei quando vi a arma na cintura, ele vigiando para saber que não era ele o vigiado. E perguntou: por acaso você tem uma grana aí? Como eu disse, tinha acabado de ficar desempregado, então minha carteira era mais vazia que minhas expectativas de futuro. Mostrei minha penúria pra ele, que agradeceu minha prontidão e saltou no próximo ponto.

- Aí conta como assalto?

- Ele não levou nada... - comentou o assaltante, tomando um gole da cerveja e recolhendo as carteiras.

- Numa situação de violência sempre se leva, no mínimo, a dignidade - pontuou o Nove.

Todos concordaram e brindaram mais uma vez. O assaltante puxou para si o prato de queijo que jazia na mesa e engoliu com pressa alguns pedaços, sem dar conta de que o garçom o avistara e providenciava auxílio policial.

- Aí um ano depois – prosseguiu o Nove – estava mais uma vez desempregado, recém ingresso na faculdade de Letras e mais desesperançado do que no ano anterior. Peguei um ônibus pra ir à casa de um amigo da época e me perdi no último banco, lendo as crônicas do Machado. Vai daí que um cara sentou ao meu lado e perguntou qual era o destino daquele itinerário e se eu saltaria no ponto final. Fechei o livro e desejei me reapresentar, relembrá-lo de nosso passado em comum, dar um toque sobre a reprodução do seu texto, como aquilo poderia se cansativo. Mas o medo me paralisou. Daí seguiu igual, contou da cadeia, da filha. Não sei por qual impulso respondi que o entendia, que também estava desempregado e tinha uma filha. Mentira, evidente, naquela época acho que eu nem sequer estava com alguém. O ladrão se espantou pelo fato de eu ser tão novo e ser pai e quis saber mais, ao mesmo tempo que abria minha carteira e tirava as duas notas de dez que eu tinha.

- E então - questionou o assaltante, ansioso em saber o final do caso.


- O nervosismo e minha vocação de mentiroso fez o resto. Dei um nome (que peguei de uma vitrine de loja pela qual passávamos diante naquela hora), data de nascimento, aparências físicas da pequena... dei todas as fichas sobre a vida bonita, porém miserável que eu arranjava para meu início de vida adulta. O cara respirou fundo e deu a ideia: ô, vamos ali comigo fazer uns corres juntos, a gente divide. Precisei acrescentar um sogro investigador pra me safar da piedade do ladrão, que me devolveu dez reais antes de descer, me abençoando: cuida bem da sua pequena e se cuide.

Os três ergueram um último brinde e beberam de uma vez, ignorantes da fuga do assaltante e da viatura que o procurava. Os olhares se perderam mais uma vez rumo ao nada, enquanto o garçom sonolento guardava as últimas cadeiras e sonhava com um amor que deixou em sua terra.

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