quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Lembrança enferrujada

Era hora de Dalton fazer uma viagem. Tinha que revisitar o passado nebuloso que a família insistia em manter, se recusando a vender o sítio ainda que proibindo qualquer visita à propriedade.

Há cinco anos chegou a pensar que a viagem seria possível. Após a morte do pai, que sempre censurava qualquer menção ao sítio, acreditou que o caminho estaria livre. Só então que a mãe, sempre tão reservada, assumiu o papel de censora.

Hoje, inválida, a mãe não poderia dar nenhuma informação quanto ao passado nebuloso, por outro lado também não poderia impedir a viagem de Dalton.

Ele sabia que já havia morado no sítio, mas era tão pequeno que não podia contar com as lembranças dessa época. Com um pouco de esforço poderia recuperar algum flash de memória, enviesada e nada confiável. Lembrava de brincar em um triciclo com alguma criança, mas não ficaria surpreso se seu próprio inconsciente estivesse personificando algum boneco.

De concreto sabia que o sítio trazia péssimas lembranças aos pais e que por alguma razão, em nenhuma hipótese eles consideravam vender a propriedade. Agora parecia o momento ideal. Uma visita para se livrar do passado e vender o sítio. A parte arrendada mal cobria os custos e o dinheiro da venda ajudaria no cuidado com a mãe.

Depois de uma viagem longa e cansativa, chegar no sítio não era muito acolhedor. Os sinais de abandono começavam no portão de entrada e o mato alto quase encobria o caminho até a casa. Só o trecho arrendado tinha sinais de cuidado, com uma vasta plantação de soja.

Não foi difícil passar pelo portão. A madeira apodrecida cedeu com um empurrão. Na casa a situação era mais complicada. Os vidros, intactos, já não eram transparentes com toda aquela poeira. As janelas e portas eram bem trancadas e não tinha nada para tentar arromba-las. Em um mezanino anexo ao telhado viu o triciclo de suas lembranças. Talvez fosse ali que havia criado seus amigos imaginários.

Decidiu ir até o vizinho. Sem dúvida teria alguma ferramenta para emprestar. Passou ao lado do poço, próximo à casa. Já fazia um bom tempo que estava com sede. Viu o poço lacrado por uma grossa tampa de concreto, cimentada ao redor da borda. Ficou imaginando qual o sentido de lacrar um poço daquele jeito.

O caminho até a casa vizinha foi longo. Chegou ofegante e encontrou o caseiro junto à cerca. Explicou que precisava de ferramentas e pediu um copo de água. O caseiro estranhou que o rapaz tenha se apresentado como proprietário do sitio ao lado e achou melhor apresentar Dalton à patroa.

Chegando ao alpendre o caseiro chamou e uma mulher já bastante idosa saiu da casa. O desinteresse foi interrompido com um olhar de espanto, assim que olhou para Dalton.

“Danilo?!”

“Não... é Dalton... eu sou filho do dono do sítio ao lado.”

A velha não conseguiu disfarçar a surpresa. Parecia ter visto um fantasma. Ainda assim ofereceu água ao jovem e pediu licença, alegando estar ocupada. O caseiro trouxe uma caixa de ferramentas e Dalton voltou para a casa, desta vez sem sede, mas com o peso extra das ferramentas.

Arrombar a porta não foi tarefa fácil. Além da falta de habilidade do rapaz, a fechadura estava emperrada depois de tantos anos parada. A ideia inicial de danificar o mínimo possível a porta foi deixada de lado. Ele só queria abrir logo a casa e por fim à ansiedade.

Depois de muito suor a porta cedeu. Ali estava seu passado, abandonado, empoeirado e esquecido. Na penumbra dos cômodos onde a energia elétrica havia sido cortada e a luz do sol mal atravessava os vidros sujos das janelas, Dalton começou a abrir tudo o que era possível em busca da claridade.

Dava para notar que boa parte da mobília havia sido levada e o restante combinava com os móveis da casa dos pais. Tudo dentro das expectativas, até a única porta interna que estava trancada. Mais um esforço com as ferramentas, dessa vez com um pouco mais de prática, e o rapaz entrou no único quarto que parecia intacto. Nenhum móvel havia sido retirado.

Cobertos pela poeira estavam a cama arrumada, o guarda-roupas cheio de peças infantis, a prateleira com brinquedos antigos e uma cômoda, onde dentro de uma das gavetas Dalton encontrou um envelope.

Abrindo o papel pardo Dalton encontrou um atestado de óbito, datado quando ele tinha quatro anos. Na filiação estavam os nomes de seus pais. O documento havia sido emitido para Danilo, nascido dois anos antes que ele. A causa da morte, afogamento.

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