domingo, 20 de dezembro de 2020

O gênio

Era o primeiro Natal em muitos anos que ele sentia fazer a coisa certa. Já havia perdido as contas de quantos natais passou sozinho, sentindo que deveria estar cercado de pessoas ainda que sem vontade. Pelo menos dessa vez essa era justamente a recomendação para a população. Nada de festas com aglomerações.

Ultimamente estava mais fácil passar as festas sozinho. Nada diferente de vários fins de semana ao longo do ano, que passava maratonando séries aleatórias. Bem melhor que aguentar a programação da tevê. Sentia como se há séculos a internet oferecesse entretenimento, mas também lembrava dos últimos anos desconectados.

Não lembrava quase nada de xadrez, mas ouviu tanta gente falando sobre o Gambito da Rainha, que resolveu arriscar. Pelo menos aprendeu de cara que sempre esteve errado. A vida toda se referindo às próprias canelas como gambito, ao invés de cambito.

E assim se passaram quase sete horas natalinas. Não achou ruim, só achou previsível. Desde criança, perdeu as contas de quantos super gênios, com um dom natural manifestado desde a infância, acompanhou nas telas.

Na verdade, passou toda a juventude esperando por seu próprio dom. Sonhava com a grande descoberta, que o faria ser o melhor em alguma coisa. Seria respeitado. Daria a volta por cima. Seria grande e todos lhe dariam o devido valor. Acabou jogado na poltrona, vendo o que apelidou de Rock IV de saias, pela eterna disputa entre EUA e URSS nas telas.

Provavelmente o primeiro sonho foi ser jogador de futebol. Talvez o maior artilheiro ou o goleiro que não levava gol nem de pênalti. As primeiras peladas na escola deram conta de descontruir a ideia de um novo Pelé. Depois pensou em ser um grande músico. Quem sabe um baterista, ou um frontman guitarrista, de repente um violonista. Nada que passasse dos primeiros acordes.

Assim foram os pretendidos dons de ser um desenhista que revolucionasse os quadrinhos, um escritor de best sellers, um comediante que arrancaria risos com facilidade, um gênio da informática, um cientista renomado, ao menos um funcionário exemplar, sem o qual a empresa parasse.

Aos poucos os sonhos grandiosos deram espaço a mediocridade mais comum. Com empregos comuns, com dias comuns, com a vida mais cansativamente comum que jamais poderia sonhar. O dom especial que tanto almejava assistindo aos filmes nunca apareceu

Depois de tanto tempo esperando o dom que o transformaria no protagonista, se conformou com o papel de coadjuvante, até não poder mais negar que era um reles figurante, que passa despercebido pela própria vida. Já era tarde para desencaixotar o tabuleiro de xadrez, abandonado quando mais um possível dom foi frustrado.

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