Maria morria de medo de
morrer. Na verdade seu nome era Helena, mas gostava de ser chamada de Maria
Helena. É mais chique, dizia ela. Com seus noventa e dois anos, as rugas das
expressões brutas dominavam seu rosto. Odiava a vida, odiava as pessoas, odiava
não conseguir fazer mais nada. Odiava não enxergar direito. Mas odiava mais a
morte.
Lembrava-se
frequentemente de quando era criança, no velório do pai. Que péssima lembrança,
não devia ficar pensando nisso. O pai morrera de derrame, bem novo, e por isso,
sua perna havia encolhido, sua mãe lhe explicara. No velório, na cidade
pequena, lembrava-se do bafo do bêbado que, trocando as palavras, interrompera
o luto da família. Cidade pequena é cheia dessas coisas.
São da família do
falecido? perguntou o bêbado, passando correndo o olhar pela criança encolhida
no canto. Forçando os olhos, se aproximou do caixão, chamando a atenção da
matriarca da família. A perna dele está errada no caixão, apontou o bêbado para
o caixão. Vou arrumar, disse, puxando a perna encolhida para baixo. A perna
caiu do caixão.
Que horror, se lembrava
Maria Helena. Não quero morrer, não quero ser isso. Não quero ser objeto de
riso. Odiava a morte e a fragilidade do corpo. Por isso, pensava tanto nisso.
Mas não devia, dizia de si para si.
Nos últimos anos, abandou
o catolicismo e se tornou espírita. Na verdade, era uma espírita fajuta, pois
nunca vira um espírita com medo de morrer. Afinal, a morte é apenas uma
passagem. Ou deveria ser. No fundo, sabia que seria apenas comida de verme.
Invejava os personagens
de suas ficções favoritas. Que coragem tinha Brás Cubas, ao dedicar suas memórias
ao verme que primeiro roeu as frias carnes de seu cadáver. Por isso, resolveu
fazer alguma coisa em relação a sua morte.
Pediu para a família o
caixão mais barato. Não queria flores e não queria passar tempo em velório, com
medo de aparecer um bêbado ou outra pessoa indesejada qualquer. Vai ser em
casa, disse às filhas, que já não conversavam entre si.
Um dia resolveu pedir à
neta que a buscasse em casa. Quero dar um passeio, pediu. Aonde vamos, vó?
Quero ir ao cemitério novo da cidade, disse decidida.
Foram, e ao chegar lá,
pegou todos os folhetos da recepção e foi caminhar pela área cheia de verde.
Mas e o túmulo do vovô, por que a senhora não quer ser enterrada lá? - perguntou
a neta. Não quero, respondeu. E o túmulo do seu pai e da sua mãe? Não quero ser
enterrada perto de gente chata, esbravejou a avó, já resmungando.
Aqui é bonito, mas fica
muito longe da cidade, refletiu em voz alta enquanto se apoiava em um corrimão
para descer os degraus de volta ao estacionamento. Uai, mas que que tem? Indagou
a neta. A senhora vai querer ir comprar pão na padaria todo dia, por acaso? Brincou
a neta sorrindo, já acostumada com o jeito da avó.
Deu uma última olhada no cemitério
antes de entrar no carro. Pelo menos tem muitas árvores. Resignada, Maria
Helena comprou ali seu espaço e esperou silenciosamente o momento de se mudar para
lá.
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