Quando o velho abriu a porta para entrar em casa já estava escuro. Não dava para enxergar um palmo adiante, mas não precisou tatear o caminho. Depois de tanto tempo esticou a mão direita, que pousou de forma certeira sobre o interruptor.
A sensação foi de que a luz, inundando a casa, esvaziou seu peito. Já haviam levado quase tudo. Não fazia ideia de onde poderia encontrar novas memórias para remobiliar aqueles cômodos. Ele hesitou em seguir adiante, mas não havia para onde voltar.
Nunca tivera um gato, apesar de simpatizar com os bichanos, mas lembrou de que costumam associar os felinos com um apego à casa, mais que aos donos. Não faz sentido. Analisando o que sentia, considerou que talvez os gatos se apeguem às lembranças. Os cheiros, os sons, as histórias vividas. Não havia sobrado quase nada.
Não queria que sua vida passasse por essa metamorfose. Pensou em Gregor Samsa, personagem de Franz Kafka que acorda metamorfoseado em um inseto. A relação era válida. Era assim que se sentia. Um bicho repulsivo, asqueroso, talvez até nojento, e completamente incapaz de mudar a própria condição.
Gregor. Gregório. Soava bem, principalmente por soar péssimo. Um nome antigo, anacrônico, nada atraente e sem graça. O velho achou que poderia se chamar Gregório ou ao menos passar a se apresentar assim.
Consciente de sua condição, assim como a personagem do livro, sabia que na impossibilidade de alterar a própria imagem, o melhor a fazer era permanecer recluso. Trancado no quarto. Longe dos olhares que denunciariam a repugnância que ele causava.
Essa atitude não era nada confortável, porém era a que gerava menos problemas. Mas um imóvel vazio era demais. Quando sozinho podia reviver as lembranças guardadas nos móveis. Agora nem isso seria possível. As paredes nuas repetiam cada barulho, com um eco que martelava seus ouvidos.
Kafka foi mais bondoso com seu personagem. Ao antever a retirada da mobília o inseto pode assumir os riscos de sair de seu esconderijo e tentar agir. Sabia que o preço seria alto, mas não tinha alternativa, a não ser expor sua desagradável imagem. O velho Gregório estava em dúvida. Não sabia se havia demorado para agir ou se mais uma vez era um velho impotente diante de um destino inevitável.
Um banho. Por mais vazia que a casa estivesse ainda havia a possibilidade de tomar um banho. Nem muito curto, nem muito longo. O suficiente para ter certeza de que a sujeira que sentia no corpo não sairia com água e sabão.
Ao terminar percebeu que o banho era mesmo sua única alternativa ali e que não havia adiantado nada. Não tinha para onde ir, mas ficar na casa vazia não fazia sentido. Voltou a entrar na mesma roupa que vestia, trancou a porta por hábito, já não havia nada de valor ali dentro, e saiu sem rumo.
Voltou a pensar na sorte do personagem de Kafka e andou pelas ruas do bairro esperando, em vão, aquela maçã redentora do livro. Isso o faria sofrer profundamente. Gragor Samsa deve ter sentido uma dor lancinante até perder os sentidos e finalmente romper os laços que o mantinham às convenções sociais.
Gregório não teria a mesma sorte. Sua dor seria crônica. Nenhuma maçã nem nada do tipo o libertaria daquela prisão psicológica. Levou toda uma vida colocando tijolos sobre tijolos em um muro que o protegesse do mundo. Agora o jeito era permanecer ali, rodeado por um muro e mais nada. Andando pelas ruas e ouvindo seus pensamentos ecoarem no vazio de seu muro interior.
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