segunda-feira, 12 de março de 2018

Morar no mesmo prédio que a minha empregada? Nem morta!

Um episódio lamentável aconteceu com uma amiga. Ela é corretora de imóveis e no seu catálogo tem vários prédios, coisa normal, porque clientes pedem apartamentos em zonas diferentes e o corretor tem que ter diferentes alternativas.

Um casal a procurou e pediu um apartamento de três dormitórios na Mooca, um bairro classe média em São Paulo. Ela encontrou um que parecia ter tudo o que o casal procurava, ao preço de 400 mil reais.
São Paulo é um dos lugares mais caros do planeta para se comprar uma propriedade, levando em conta a zero qualidade de vida que se tem na cidade. Mas a faixa de preços mais ''acessíveis'' para a classe média é essa, entre 400 e 700 mil reais.
Ela ofereceu o apartamento, mas o casal disse que não tinha os 400 mil reais. Caso eles pedissem crédito ao banco, pela sua renda não poderia ser acima de 200 mil reais, teriam então que colocar outros 200 mil de sua parte.

Mas a mulher está grávida e minha amiga se preocupou com isso, sabia que ela precisa se mudar antes do bebê nascer, então procurou e achou um apartamento de 190 mil, um pouco afastado de onde eles queriam, mas fácil de financiar porque faz parte do projeto ''Minha casa, minha vida''. O apartamento tem os três dormitórios, vaga na garagem e área de lazer, então ela ligou para o casal e contou sobre o lugar. O marido disse ao telefone que passaria mais tarde na imobiliária para conversar com ela e ficou combinado assim.

De tarde o casal chegou ao lugar, a mulher um pouco nervosa e o marido soltando fogo pela boca, exigindo falar com o gerente, quando este se aproximou o marido disse:

-Eu exijo que você coloque na rua está sua funcionária (apontando o dedo para minha amiga), porque é uma incompetente, infeliz e ofendeu a minha esposa e a mim.

O gerente perguntou o que tinha acontecido e ele continuou:

-Nós viemos comprar um apartamento, mas não temos os 400 mil agora, somos classe média, não somos pobres, nem miseráveis e não precisamos do favor de ninguém e essa sua funcionária ordinária nos ligou e ofereceu um prédio do projeto  ''Minha casa, minha vida'', ora quem essa cretina pensa que é?  Esta estúpida nos ofereceu um apartamento que fica quase a periferia!  Não sou favelado, tenho diploma superior e minha mulher também.

Entendendo a confusão o gerente explicou que o prédio não era do governo, era de uma construtora particular, mas como os apartamentos estavam abaixo de 200 mil reais, entram  no programa  ''Minha casa, minha vida'', ou seja, a pessoa pode pedir o financiamento na Caixa Econômica, que financia 90% do valor do apartamento e os outros 10% a pessoa pode pagar em suaves prestações. É apenas isso, não é um prédio construído pelo governo.

Mas o marido não parecia entender, continuava dizendo que  foi ofendido pela funcionária da imobiliária. No meio dos gritos disse:
-Vocês acham que eu estudei, melhorei na vida, para ser vizinho da minha empregada? Porque ela comprou um apartamento pelo programa ''Minha casa, minha vida''! Querem que eu divida a vaga na garagem com meu porteiro? Passar o fim de semana escutando pagode e sentindo cheiro de carne barata sendo assada? E acham que eu vou em uma reunião de condomínio cheia de peão discutir problemas que só favelados geram? E meu filho vai brincar com que tipo de criança? Os filhos da faxineira?

O gerente conseguiu contornar a situação dando razão ao cliente, percebeu que o marido não estava escutando nada e não era culpa de ninguém se ele não tinha 400 mil reais para o apartamento que queria.

Minha amiga que me contou que isso é mais comum do que parece, as pessoas não têm noção de preços, não investigam antes e chegam a uma imobiliária pedindo um apartamento em região nobre por um determinado preço e quando são informadas que com essa quantidade conseguem comprar apenas algum apartamento um pouco afastado, surtam, ofendem os corretores e dizem que não são  ''tão fudidos para morar na periferia''.

A história acabou do mesmo jeito de sempre, a corretora foi humilhada e agredida verbalmente, o casal se acalmou, na verdade o marido, e disseram que iriam procurar outra imobiliária de mais nível, como se todas não trabalhassem os mesmos preços.
Ah, se queria tanto esse apartamento de 400 mil, que tivesse trabalhado mais, paciência, a pessoa mora onde dá para morar. Não é culpa do cidadão que a cidade não teve planejamento para crescer e as construtoras cobram o que querem, trabalham com tabelas que não existem em nenhuma parte do mundo, todos roubam o cliente e carregam em custos que não existem. Mas o ponto é aquele mesmo, se a pessoa quer um apartamento de 400 mil reais, então que junte o dinheiro.

O que assusta no Brasil é a mentalidade separatista, o horror que pode ser para uma pessoa de classe média morar no mesmo prédio que sua ''empregada''.
Brasileiro não têm noção dos seus direitos nem conhecem uma sociedade igual, pensam ainda que ser bem sucedido é viver afastado de tudo e todos, longe do resto. Não conseguem ver o país como um todo, caso vissem perceberiam a maravilha que pode ser que todos tenham aceso a uma vida mais digna.

Cada país tem seus limites mentais, os americanos têm um que me incomoda demais, são um povo bélico, paranóico, adoram armas, guerras, se sentem perseguidos por todos e veem inimigos em todos os lugares. Mas nós, brasileiros, destilamos nosso ódio internamente, os americanos brigam com as pessoas de outros países, nós lutamos dentro pela questão social. 

Enquanto o mundo batalha pela igualdade e para que todos tenham as mesmas oportunidades, os brasileiros querem distância uns dos outros, separados pela condição econômica.

Com um pouco de esforço posso entender a loucura americana, apesar de ter horror as armas, mas não consigo, por mais que tente, compreender a lógica brasileira, ou paulista, de considerar humilhante morar no mesmo prédio que sua empregada.

Na maioria do tempo sou como todo mundo e jogo a culpa no governo, mas quando acontecem situações assim percebo que nosso atraso social corresponde a um atraso ético e moral.

Talvez não estamos preparados ainda para viver em um país igual e justo, ainda estamos construindo muros e procurando nos afastar do que não é da mesma  ''condição social''.

Fiquei surpresa com a tranquilidade que minha amiga me contou a história, ela garantiu que isso acontece pelo menos uma vez por semana, mas agora tinha se assustado porque o marido entrou gritando e ela achou que ia apanhar.

Me parece tão provinciano ficar vendo o que os outros compram ou deixam de comprar, não entendo como alguém se preocupa com isso. Ora, se vou comprar um apartamento estou me lixando para quem mora nele, não me interessa se é o rei da Arábia ou uma diarista, eu quero é saber da minha casa.

Nosso problema como país não é apenas a corrupção, os desvios, mas sim a maneira como muitos brasileiros veem a sociedade, como encaram a melhora econômica como um passaporte para tratar os outros como leprosos. 

Talvez não somos tão humanos e generosos como gostamos de dizer, no fundo somos mesquinhos, egoístas e estamos nos lixando para todos, desde que o nosso prédio classe média não tenha nenhuma moradora que seja ''empregada''. Talvez aqueles políticos em Brasília que roubam, desviam, mentem, parecem ter nojo de todos e vazios de conceitos éticos são o nosso mais puro reflexo. Talvez.

Iara De Dupont

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