quarta-feira, 26 de agosto de 2020

o pássaro Sankofa

O pássaro Sankofa

Fernando de Albuquerque


A primeira coisa que ouço no diâmetro do campo,

é meu uivo rasgando o silêncio que existe

entre o corpo e as vestes dos meus inimigos.

Solto um canto medonho fazendo tremer as

juntas expostas ao inchaço da friagem. A brisa de

Siracusa não é nada, tal como o lamento

dos gatos anunciando a manhã. Uma

existência perdida em vocábulos ininteligíveis,

sancionando fatos com alguma

aquiescência lacônica. Uma vontade fica

suspensa como água que escapa entre os

dedos abertos. Desse pesadelo? Restará só

uma fala pegada ao órgão da vida, só nervo,

só músculos tremendo aos espasmos do tempo.

Esse meu grito, esculpido no ferro fundido do colono

glutão, tem força idêntica ao arroz guardado

nos penteados das princesas de Akan que cruzaram

o Atlântico. A silhueta Sankofa é uma agonia antiga.

É a sentinela da casa, tal como o cacique

de todos os mortos que alvoroçou no sono dos cartagineses

que lamentaram a praticidade banal de Catão.

Há algo de hediondo e essencial agregado

às sombras de Andrika. Um organismo complexo

e nuançado de crenças reunidas em um dicionário

de valores distintos. Nenhum homem branco poderá

jamais catalogar os carimbos de cabaça esculpidos e

avermelhados simbolizando os frontões das caturras

da eternidade. O meu canto, que resplandece na frente

da casa sob o céu de cobalto, é a previsão de dias

de fogo e dias de espada. Sou filho da obscura andança,

transmitindo meu sonho em mensagens quebradas

nos becos cingidos nas taperas da memória. Cantarei

mais uma vez nas curvas da história, quando as feições

brancas, claudicando sobre um calor meridiano, vão gritar

homilias de desculpas com os olhos rajados

de vermelho. Andarão mancos e doentes, entoando

padres-nossos e hosanas, como anacoretas da capadócia.

Correndo de hunos sorrateiros e onanistas em uma

desolação sem fim. Prestem atenção ao Sankofa, pois

os pássaros contam coisas com figuras de linguagem.

 

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