sábado, 20 de outubro de 2018

Vagabundos insolentes

Insolentes. Vagabundos insolentes. Eram as primeiras coisas que vinham na cabeça de Jairo, logo que acordava. Principalmente nos últimos meses.

Já fazia mais de um ano que o rapaz não colocava os pés para fora de casa. Talvez mais que dois. A mesada dos pais e trabalhos a distância que arrumava pela internet eram suficientes para pagar as poucas contas, e o delivery – como o mundo sobreviveria sem delivery – garantia o acesso ao que precisava.

Assim era o mundo, pensava Jairo. As pessoas boas presas em casa e os bandidos soltos. Insolentes. O tempo livre, que não era pouco, o rapaz aproveitava para não ficar de braços cruzados contra ´tudo isso que está aí´. Passava horas postando comentários em notícias na internet e debatendo em grupos daqueles que, assim como ele, garantiam serem excluídos da sociedade pelos vagabundos insolentes.

Naquele dia o ódio estava particularmente aflorado. O entregador de água chegou quando Jairo estava no banho e simplesmente deixou o galão de vinte litros na porta. A que ponto a sociedade havia chegado! Ele teria que carregar um enorme galão de água para dentro de casa, sozinho!

A tarefa o deixou exausto, teve que improvisar vários apoios e alavancas e ainda deixar o galão no chão, tombando a água em uma jarra até aliviar o peso. Tudo por causa de um vagabundo insolente que não cumpria o próprio trabalho.

Felizmente sentia que os problemas da sociedade estavam próximos do fim. Poderia, finalmente, se libertar da opressão que sofria por parte daqueles insolentes. A gente de bem estava prestes a ocupar seu lugar na sociedade e os insolentes morriam de medo disso.

Até que enfim seu árduo trabalho de comentários em notícias na internet estava surtindo efeitos. A população parecia ter acordado. A tradição, a família e a propriedade privada não seriam mais ameaçadas e tudo voltaria a ser como antigamente, quando... quando... quando não tinha tudo isso que está aí!

Uma coisa era certa, Jairo nunca mais teria que passar pela humilhação de ficar a tarde toda trabalhando duro para arrastar o galão de água até a cozinha. Vagabundos insolentes!

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