- Mas aonde, realmente, você quer chegar?
A terapeuta lançou a pergunta e esperou a resposta por detrás dos óculos de aros grossos. A menina pensou muito bem no que responder. Sabia que não era lhe exigida uma resposta automática, mas reveladora.
Quando abriu a boca para falar, a mulher a interrompeu:
- Será que você não quer o mundo?
- Não sou tão pretensiosa.
A questionadora arqueou as sobrancelhas, como se duvidasse.
- Sou determinada...
- Disso eu não tenho dúvidas.
- ... mas quero apenas o que posso alcançar. Coisas difíceis, mas possíveis.
A menina achou apropriado contar seu sonho de ir embora do país. De como fez cursos de idiomas, pesquisou trajetos, buscou ocupações.
- E o que ainda te prende aqui? Por que não foi?
E aí ficou sem respostas. Dizer o quê? “A margarina, as carolinas, a gasolina?” Costumava dizer que há muito mundo no mundo para ela se fechar no mundinho que a rodeava. E a sufocava.
A mulher quebrou o silêncio.
- Percebe-se claramente que há duas dentro de você. Uma quer o mundo, a outra quer... quer ficar. Casar, ter filhos, esse tipo de coisa.
- E qual é a certa?
- Não existe certa. O que não pode é elas ficarem se digladiando. Precisam entrar em um acordo.
Foi inevitável para a menina não se imaginar cercada por uma miniatura de si trajada de demônio e por outra de anjo. Uma sussurrando: vá! E a outra: fique!
A hora terminou. Pagou e saiu. Olhou para fora e lembrou que havia esquecido o guarda-chuva. Fosse outro dia e teria praguejado aquela água toda caindo. Ao contrário, riu. Riu do dia cinza, das gotas escorrendo na lente dos óculos.
Caminhou rumo ao trabalho e teve vontade de voltar. Voltar e arrumar as coisas, ir embora. Pensou se esse desejo era bom, fruto da inquietude, qualidade rara, ou se era mau, mania de fugir, de buscar a inconstância. Obra ou não da miniatura endemonhada, não quis constrariar o que lhe instigava. Fez meia volta, fez o passaporte, fez as malas. Partiu para conhecer parte do tanto de mundo que há no mundo.
Muito mundo mesmo, muita vontade de mundo novo também, e muita porcaria pra atrapalhar as investidas, bastardos.
ResponderExcluirAdorei! "A margarina, as carolinas, a gasolina", resumem bem! Eu da menina ia também!!!!
ResponderExcluiradorei! e me reconheci em cada linha.
ResponderExcluirtambém existem duas dentro de mim.
é.
partir.
Por coincidência, leio esse texto com fundo musical: Free Bird, do Lynyrd Skynyrd. Quando terminei, de certa forma, já associei as temáticas.
ResponderExcluirQuem nunca carregou a dualidade de se ver no impulso de buscar o mundo, mas ao fim, notar que algo o prende? Vou além e digo que a dualidade não surge só nessa "vontade de mundo", mas em vários outros momentos da vida. É muito mais gostoso ter a dúvida e a inquietação a seu favor do que ficar nas amarras da "unanimidade" cega do pensamento. Por outro lado, nos vemos diante da necessidade de equilíbrio para não carregarmos sempre a angústia e que ela não nos perturbe. Bom seria alcançar a dose certa...
Supermeidentifiquei. Belo texto!
ResponderExcluirEitaaa! Que texto bom!
ResponderExcluirVontade de soltar essa outra que existe em mim.
=**
Eu ainda não sei o que me prende aqui.
ResponderExcluireu sei o que me prende aqui: FALTA DE VERBA.
ResponderExcluirVixi Tati, avisa essa menina aí que ela tá pagando terapeuta à toa... todo mundo tem o mesmo "problema"... ;p
ResponderExcluirPensando bem, acabo de concluir que meu segundo eu, que quer viajar e viver num país pacato e morno, volta de viagem daqui a uns 5 anos, pra me buscar... e levar junto! Como disse John: junta os dois "eus", mistura com chocolate com pimenta, faz um mix gostoso, até achar a dose certa!
Também não sei o que me prende aqui mas sei o que não me prende.
ResponderExcluirEu nao vou pra lugar nenhum, nao preciso ir para o mundo buscar aquilo que esta dentro de mim. A minha liberdade nao está em estar fora. Eu soh amo a viagem no meio da viagem, quando estou fora daquela zona de conforto. Mas eu gosto da estabilidade de estar, de ficar com os pes no chao e nao em transito. Mas acho belo e admiravel os que querem ir alem. So me aborrece o fato de muitos deles olharem os demais com aquela carinha de nojo o desprezo, como se faltassem aqueles que nao querem;ou quiseram ir, a coragem da partida para algum lugar no mundo, para novidade do mundo. as vezes a grande aventura eh permanecer aqui e fazer-se inteiro, talvez pq no final a gente vai sempre buscar um lugar para retornar, pois afinal de contas, ninguem te moves de ti.
ResponderExcluirDigo: "Tu nao te moves de ti" (hilda hilst)
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