O que é um epitáfio senão uma epígrafe do que virá
depois?
(Emiliano Barbosa)
Barbosa chegou cedo à repartição.
Estava esbaforido, mas feliz. Conseguira se lembrar da
capital de todos os países da América Central durante o percurso que fazia, a
pé, de sua casa até a repartição. Aqueles exercícios mentais eram uma constante
no cotidiano de Barbosa, que não sossegava enquanto não os cumpria. Este último
já o atormentava há mais de uma semana! Quando se lembrava de Manágua, era
Tegucigalpa que lhe faltava. Quando lembrava dos dois, era San José que lhe
fugia. Mas nesta manhã se lembrara de todos! Um dia que começa assim é certamente
um dia auspicioso: tudo pode acontecer num dia em que somos capazes de nos
lembrar de todas as capitais da América Central.
Segurando o café em uma mão e o jornal na
outra, Barbosa foi caminhando até a seção onde trabalhava, na penúltima sala do
corredor. Barbosa sentou em frente de sua mesa e, como ainda tinha uns bons
quarenta minutos antes de seus colegas chegarem, abriu o periódico diretamente
na página das palavras-cruzadas, seu outro exercício mental diário. Gostava de
começar pelas menores e ir progressivamente em direção às maiores, técnica esta
que rendeu a Barbosa mais um feito inédito naquela alvissareira manhã: entre a
singela sigla de post scriptum (PS, ao que me consta) e o
improvável sinônimo brasileiro para pic nic (convescote, como pude verificar
depois) passaram-se apenas 6 minutos e 32 segundos, um verdadeiro recorde
(palavra paroxítona, conforme Barbosa sempre fazia questão de deixar claro)
para aquele mês de Setembro que já se aproximava bastante do fim.
Somente quem já sentiu o gozo de completar
uma cartela de palavras-cruzadas poderá entender o estado de ânimo que Barbosa
estava quando finalmente colocou o periódico de lado, estalou os dedos e ligou
o computador. A tela logo se iluminou e Barbosa aos poucos foi sendo
apresentado às demandas do dia: redigir relatórios, memorandos, atas e
pareceres. Foi quando um email lhe chamou a atenção. Era uma Circular Interna,
assinada pela diretoria da repartição, que convidava a todos os funcionários a
se inscrevem num evento intitulado "I Desafio de Redação
Burocrática".
O curioso evento fora ideia do novo
diretor da repartição que, cansado de encontrar tantos erros de ortografia e
concordância nas atas e pareceres, promovia a competição com vistas a
incentivar um maior cuidado com o idioma por parte dos funcionários. O prêmio
era nada mais, nada menos, que uma progressão vertical na carreira burocrática,
fator que pretendia motivar todos os funcionários.
Barbosa era amante das palavras e dos
exercícios mentais, por isso imediatamente fez sua inscrição no evento. O que
pode parecer algo aborrecido para muitos, era fonte de grande prazer para
Barbosa. Ele se deleitava ante a oportunidade de produzir aqueles documentos,
de fazer uso das palavras a favor da burocracia estatal, de transformar meras
informações enfadonhas em verdadeiros exemplares do que chamava de literatura
processual.
Enquanto seus colegas se contentavam com
meros "deste modo", Barbosa não escrevia nada menos elegante do que
"destarte" ou "outrossim". Gostava de trabalhar as
palavras, aparar as arestas, lapidar cada virgula. Suas atas, memorandos e
pareceres eram sempre elogiados pela chefia e por seus colegas de repartição.
Até mesmo as línguas mais caluniosas reconheciam seu talento. Barbosa era muito
querido.
Barbosa se distraiu diante do monitor e
nem percebeu que já não estava sozinho. Seus colegas foram chegando aos poucos
e, paulatinamente, todos iam se informando do famigerado "I Desafio de
Redação Burocrática". Não se falava em outra coisa na repartição. O
futebol, assunto que prevalecia na copa e no refeitório, dera lugar a questões
de ortografia e retórica. Até mesmo aqueles que jamais se preocupavam em
produzir textos elegantes, eram vistos pelos corredores carregando livros de
gramática e discutindo acerca da pertinência de certos adjetivos. O novo
diretor via aquilo com grande satisfação. Seu objetivo, aparentemente, havia
sido alcançado. Com a esperança de serem premiados com uma promoção vertical na
carreira burocrática, os funcionários estavam se esforçando para tirar o atraso
de anos de total desleixo comunicativo para tornarem-se, em poucos dias,
verdadeiros literatos processuais.
Os dias foram passando e as discussões
acerca do grande evento ia só se acalorando. O nome de Barbosa logo ia surgindo
como o grande favorito para a competição, mas nada que prejudicasse sua
concentração. Para Barbosa era apenas mais uma oportunidade para praticar uma atividade
que lhe dava grande prazer. A única diferença é que desta vez seu passatempo
mental tinha ganho status de atividade séria e seu talento poderia, afinal,
ser reconhecido. Finalmente chegara a hora e a vez de Emiliano Barbosa.
Barbosa, no entanto, jamais participaria do "I Desafio de Redação Burocrática". Fora encontrado morto em sua casa na noite anterior ao evento. Uma pena. Realmente uma triste fatalidade que até hoje não foi explicada. O evento, entretanto, ocorreu sem traumas e teve como grande vencedor alguém conhecido na repartição por suas capacidades comunicativas: o presidente do sindicato dos funcionários, até então mais conhecido por sua voz nos auto-falantes do que, propriamente, por suas habilidades gramaticais. O diretor parabenizava o funcionário vencedor e exaltava o caráter democrático de todo o processo.
As poucas pessoas que foram ao velório de Barbosa puderam ler em seu epitáfio: "Há várias maneiras de matar um homem. Aqui jaz alguém que morreu pelas palavras. Outrossim, encaminha-se ao lugar onde repousa a verdade para que sejam tomadas as providências cabíveis".
As poucas pessoas que foram ao velório de Barbosa puderam ler em seu epitáfio: "Há várias maneiras de matar um homem. Aqui jaz alguém que morreu pelas palavras. Outrossim, encaminha-se ao lugar onde repousa a verdade para que sejam tomadas as providências cabíveis".
Gostei do texto, e mais ainda pq não tem uma indicação imperdível como os últimos :P
ResponderExcluirBaixei os quadrinhos, agora preciso de tempo para ler!
Aí sim! Tenho certeza de que vai gostar!
ExcluirPê, se eu sou o Barbosa eu entrava com recurso ..... morrer na véspera do grande show??? maldade
ResponderExcluirSe eu fosse o Barbosa, eu "escreveria uma carta", Risa. #piadainterna
Excluirkkkkkkkkkk, bem lembrado
ExcluirQue lindo! Até me deu vontade de nomear meu gato de Barbosa! Uma singela homenagem ao Emiliano Barbosa, que homem! Mas ainda vou me torturar um pouco com essa história de escolher o nome pro gato.... Bom, só posso te dizer que essa vida de funcionário público é muito inspiradora, não é? É da sua repartição que vc pariu o seu eu-lírico? hahaahaha
ResponderExcluirhahaha... digamos que sim, Carol. A Repartição é uma ostra cheia de pérolas! Eu gosto de Barbosa... hehe
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