O pajé Guaíra contempla o mar pela manhã com a serenidade dos olhos emblemáticos de quem retira das próprias reflexões o conhecimento necessário para lidar com os problemas do mundo.
Beirando os setenta anos, discerne entre tudo o que os brancos têm a oferecer o que há de aproveitável e o que deve ser mantido distante. Essa postura tranquila se estende para as próprias pessoas que cruzam seu caminho.
Perdeu a conta de quantas vezes, vendendo seu artesanato, viu alguém estereotipando um índio, com um grito agudo cortado por leves tapas nos lábios. Hoje isso provoca um suspiro involuntário. A indiferença externa camufla um certo desânimo diante da ignorância.
O artesanato é uma necessidade. A comida é comprada. As roupas também. A ideia romantizada do índio como um ser que vive na mata, extraindo tudo o que precisa da natureza que o cerca já não existe há séculos.
Porém o que o velho índio realmente gosta é de pegar seu violão; desafinado e sem a sexta corda, mas suficiente para acompanhar seus cantos e rezas. É assim que ele, o último pajé de sua tribo, passa seus ensinamentos aos mais novos. Ser pajé é um dom. Exige muito conhecimento acumulado ao longo da vida, postura compatível com a responsabilidade de sua função, mas, sobretudo vocação para lidar com tamanha responsabilidade.
À luz da fogueira Guaíra conta como, quando ainda era criança, se aproximou da velha índia doente, estendeu as pequenas mas já calejadas mãos sobre o rosto dela e percorreu seu corpo, até sentir um peso ao chegar na perna ferida, que a impedia de se levantar. Cinco meses depois, com a índia já falecida, Guaíra sentia leve comichão em sua mão direita, aumentando cada vez mais. Com uma rama de unha-de-gato conseguiu extrair de um dos calos uma pedrinha branca.
Essa foi a primeira manifestação de seu dom. Tivessem os mais velhos acreditado na criança de instintos manifestos, poderiam ter tratado a mão que carregou a doença e salvado a índia, que morreu de corpo seco.
Depois disso Guaíra passou por muitas provações ao longo de vários anos. A maior delas foi a bebida dos brancos. O líquido incolor queimava a garganta e franzia o cenho, mesmo assim em pouco tempo a tentação de provar mais um gole era mais forte que ele. Entre os brancos o índio era motivo de piada. Embriagado, entoava os cânticos de sua tribo de forma embolada, até cair e ser esquecido ao relento.
A vida híbrida, entre os costumes dos índios e os maus hábitos dos brancos, fez o índio Guaíra adoecer. A tuberculose, agravada pelas noites frias regadas à cachaça, o levou ao hospital quando já escarrava sangue. O corpo rústico, habituado a tribo, estava agora em um quarto gelado, de uma claridade opressora, com tubos e fios limitando seus movimentos.
Naquela noite, Guaíra desejou morrer.
Após tossir compulsivamente por mais de uma hora, o índio adormeceu. Em meio ao sono pesado e intranquilo viu na escuridão um pequeno ponto luminoso, que assim como a coceira em sua mão quando criança, aumentou lentamente até virar um brilho intenso e ofuscante, no qual surgiu a imagem de sua falecida mãe.
Emocionado ele viu a índia se aproximar devagar. Ela estava exatamente igual à imagem que ele se lembrava, ornada com penas, colares, tornozeleiras e a face meticulosamente pintada. Ao chegar bem perto ela segurou o rosto do filho com as duas mãos e disse em tupi-guarani “agora você está pronto para ser pajé da sua tribo”.
Ao acordar o pajé Guaíra já não tossia. Ainda sentia na boca um aroma de ferro, graças ao sangue que expelira na noite anterior; os músculos do peito doíam por conta da forte tosse, mas uma onda de paz parecia envolver seu corpo, que parecia já ter se livrado dos desejos inconvenientes.
O pajé Guaíra nunca mais bebeu. Hoje fica pensando em como era capaz de consumir algo que precisava fazer cara feia para beber. Encontrou nas origens de sua tribo muitas coisas que dão prazer sem cobrar em saúde.
Sua tribo tem uma nova aldeia, ainda pequena, mas com futuro promissor. Guaíra não guarda ressentimentos de quem quer que seja. Todos são acolhidos e bem recebidos por ele na aldeia Awa Porungawa Dju. Sua habilidade em identificar na mata as plantas benéficas e as parasitas se estende às relações humanas. Hoje Guaíra carrega todo o peso de ser o único pajé da tribo com a serenidade de quem equilibra uma leve pena entre os dedos.
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