quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Soluções práticas - Parte 4

_O que a traz aqui? Depois de tanto anos pensei que já havia se esquecido de mim. Te ensinei a pescar, a caçar, a atirar... De repente você ganhou asas e saiu pelo mundo.
_Vô, sinceramente, devo ir direto ao ponto, não temos tempo a perder. Preciso de algumas informações, preciso da sua ajuda.  
_Ora, que tipo de informação teria um velho como eu que interessaria alguém que parece ter tudo ao seu alcance? Vocês, modernos, cheios da razão e donos da verdade...

Na sua juventude rebelde já teria se irritado com o velho avô, e desistido da conversa. Mas, agora ela simplesmente bebeu mais um gole de vodka e ficou lendo desinteressadamente o que estava escrito - aparentemente com uma faca - naquela mesa:"Onde há cabeça, se encontra um chapéu".
O lenhador prosseguiu: _Bem, como você já sabe, em outras épocas aqui nessa região era só dor, sofrimento e humilhação. Mas, são outros tempos. As pessoas vem para cá a procura de salvação, apoio e paz, o que a traz de fato até aqui?

Por duas vezes ensaiou dizer, apesar da voz não sair. Parecia haver um bloqueio, tomou outra dose, e confessou: _Sei que posso confiar em você, apesar de tudo que aconteceu, eu fui enviada para encontrar uma chave escondida aqui desde essas tais "outras épocas". Porém, não sei nem por onde começar. O Avô, que apesar da idade tinha um corpo forte, resistente ao tempo de um bom e velho lenhador, que serviu ao exército soviético se espantou ao ouvir falar da chave, antes mesmo da moça terminar a frase ele se levantou, olhou-a firmemente no fundo dos olhons e acenou dando a entender que ela deveria segui-lo.

***

Não precisaram andar muito lá fora até ela perceber que estava ao redor do antigo Mosteiro Solovetsky, situado nas Ilhas Solovetsky, também conhecidas por Solovki, localizadas no Mar Branco, 161 quilômetros abaixo do círculo polar ártico. Aquele silêncio, aquelas pessoas, tudo parecia tão diferente, mas o silêncio é que a intrigava mais. "Como pode algum lugar no mundo ser tão silencioso e frio?" perguntava a si mesmo em pensamento. Diziam os anciões que há muito anos atrás, naquela ilha, havia um grande labirinto que levava aos portões do céu ou do inferno. Agora, do lado de fora dos muros do mosteiros as vacas e cabras pastavam livremente em uma vila contendo pouco mais de mil habitantes, boa parte já na melhor idade. Do outro lado dos muros, no mosteiro, mais uma centena de monges tentando manter o lugar preservado.

Após caminhar por quase 2 horas, dentro e depois fora do mosteiro, o lenhador parou em frente à uma antiga Igreja e disse: _Muitos morreram nesse lugar, hoje morre um segredo. Eu sei que vai ser difícil para você, só que preciso contar. Sua avó me fez prometer que eu guardaria esse segredo até o dia da minha morte, mas você é a última do sangue dela e merece saber a verdade. Seus pais morreram assassinados e imagino que a pessoa que fez isso com eles também deverá tentar te assassinar. Tome muito cuidado filha, muito cuidado. Eu te treinei para isso, e um dia você precisará usar tudo que lhe ensinei. Nesse momento o silêncio que predominava em toda ilha deu lugar a um breve choro, depois de anos, ela se ajoelhou aos prantos e subitamente foi tomada por um sentimento de ódio e vingança, misturado com saudade e dor. Seus pais sempre fizeram de tudo para protegê-la e bancar a casa, seu irmão, ninguém sabe se está vivo, ou morto, somente que sumiu. De repente ouviu um barulho bem alto de tiro, em seguida mais outro e outro. Imediatamente levantou, sacou o revólver, olhou para os lados e não viu ninguém. Só deu tempo de segurar o velho lenhador nos braços, sentiu o sangue escorrer, tentou estancar com as mãos, mas não parava de jorrar sangue e mais sangue. Ele era muito grande, muito pesado, ela gritou: _Socorro, socorro! A moça continuou gritando em vão: _Me ajudem, me ajudem! Infelizmente estava muito longe para pedir ajuda a alguém. Sentiu na pele a dor dos que estiveram por ali, em outras épocas, pedindo por socorro sem ninguém ouvir, clamando por um herói que nunca apareceria, um Deus dito onipotente, onipresente, porém indiferente.

Conformado, proferiu o lenhador: _Eu já sabia, 94 anos, uma hora tinha que partir mesmo. Velhos como eu já não sentem dor, e nem medo da morte. Após isso se deitou, segurando as mãos da moça em meio às lagrimas e risadas fracas, lembrando vagamente de momentos felizes em sua longa e interessante vida. _Dizem que aqui é o melhor lugar para encontrar a solidão, tão importante para a alma. Talvez por isso tenha vindo, experimente meditar, quem sabe encontre o que procura. Se eu aprendi algo nessa vida é que a história não pode ser mudada, pois é passado, mas pode ser analisada. Reconhecer os erros e fazer diferente, é assim que crescemos, é assim que nos tornamos humanos. Sem isso, somos nada mais do que animais, disputando bens, territórios e satisfazendo desejos pessoais. O velho lenhador respirou fundo, olhou para a neta que o abraçou fortemente como uma última tentativa de mantê-lo vivo, e lentamente fechou os olhos, era hora de partir.

***

Após todo o trauma, restaram os encargos de tratar da documentação e destino dos pertences e bens do falecido avô. O vilarejo estava assustado com o assassinato e o frio estava chegando com mais força, o que só apertava ainda mais o desejo de ir embora daquele lugar. Sobre a mesa havia apenas alguns documentos, um velho chapéu que o moribundo usou durante a vida inteira, e uma garrafa da melhor bebida da região. Naquela tarde que parecia não ter fim, após participar de uma cerimônia no mosteiro, foi dar umas voltas pela ilha e depois voltou à casa que antes pertencia ao velho, sentou-se na mesma mesa que estivera há dois dias atrás, abriu a boa e velha garrafa de vodka - agora já no final - olhou as cabeças de animais na parede, e depois se pegou lendo novamente a intrigante frase, quase apagada pelo tempo e escrita à faca: "Onde há cabeça, se encontra um chapéu". 

Em outras épocas pode até não ter feito sentido, mas agora tudo se encaixava, a mensagem, as cabeças, o chapéu, a chave... só não esperava enterrar alguém para conseguir desvendar esse mistério. Contudo, ficou com mais dúvidas do que certezas. Seria seguro voltar e entregar a chave agora? Quem mataria um velho lenhador a troco de nada? E, por quê não a matou também? Pensou a moça, já exausta, que bebeu a última dose antes de cair profundamente nos braços de Morfeu.

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