terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Quando o ano começa

Poucas coisas deixavam Edivaldo mais irritado do que dizer que o ano só começa depois do carnaval. E o que ele fazia desde o começo do ano, era o que?

Sua vida era entre Corinthians e Palmeiras. Da estação Itaquera para a Barra Funda e vice-versa, inúmeras vezes. Aprendeu e desenvolveu técnicas que compartilhava com os companheiros de trabalho.

“Olha a bala docinha, que de amarga já basta a vida! Minha nossa, uma atriz de cinema resolveu pegar o metrô hoje; vai uma bala, princesa? Pessoal, eu estou desempregado, preciso sustentar meus filhos, pagar o aluguel, estou aqui vendendo bala com toda dignidade.” Às vezes cansava e apenas distribuía os pacotinhos de bala pelos colos fatigados e voltava recolhendo.

Todos os dias aparecia algum inocente querendo ajudar. “Tem que ir na linha amarela, lá o pessoal é cheio da grana!”. Isso. Cheio da grana e cheio de urubu, doidos para confiscar a mercadoria.

Isso era outra coisa que deixava Edivaldo puto. Se conformava com os olhares de censura, desprezo, até nojo que algumas pessoas lançavam, mas precisava denunciar seu trabalho para os urubus? Vira e mexe tinha que fugir para não perder a mercadoria, que dava um lucro tão pequeno.

Um fim de semana antes do carnaval resolveu que nem ia trabalhar. Não valia a pena. Melhor pegar o metrô só para comprar mais balas do fornecedor e sair para vender só durante a semana, que era mais lucrativo.

Ficou surpreso. Quanto mais se aproximava do centro, mais o metrô enchia. Festa estranha, gente esquisita, gliter, tiara de unicórnio, homens com roupa de mulher e uma gritaria danada nas estações. Bando de hipócritas que não têm o que fazer, pensou. Se ele gritava para vender as balas todo mundo denunciava, agora ficavam lá gritando por nada.

Na volta foi ainda pior. Com a mochila pesada, carregada com mercadoria para vender durante a semana, tinha que driblar toda a playboyzada festejando sabe-se lá o quê. Achou que tivesse tirado a sorte grande ao entrar no vagão e ver um banco vazio. A viagem era longa e a carga que carregava era bem pesada.

Doce ilusão. O banco não estava vazio, mas ocupado por uma poça de vômito. Contra isso não havia denúncia. Não era crime emporcalhar o metrô, o que não podia era trabalhar dentro do vagão.

De repente Edivaldo teve a grande ideia, que brotou daquela poça de vômito amarelado, com grumos vermelhos, de uma daquelas pessoas descentes que denunciavam seu trabalho. Aproveitou a mochila lotada, pegou um pacote e começou.

“Olha a bala docinha pra tirar o gosto ruim da boca! Aqui tem glicose para evitar a ressaca! Olha a bala pra dar um beijo docinho na gata!”

Edivaldo nunca vendeu tanto em tão pouco tempo. Nem os urubus, preocupados com as brigas dos bêbados, incomodaram. Exagero dizer que o ano só começa depois do carnaval, mas no fim até que deu uma boa ajuda.

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