sábado, 20 de junho de 2020

Autoridades

 
Deslocado para uma ocorrência em Alphaville, o Soldado chegou pensando que era melhor quando atuava na periferia. Não por estar mais perto de casa e muito menos por segurança, mas sentia que era na periferia que tinha a liberdade para trabalhar.

Quando chegava nas comunidades impunha a autoridade que desejou desde criança. Ultimamente se sentia como o presidente, mostrando quem é que mandava, sem ter que tolerar conversa fiada. Ainda no caminho brincava com os amigos na viatura, “hora de desestressar”.

Em Alphaville era diferente. Quando desceu do carro e instintivamente levou a mão à arma, sentiu logo um cutucão do amigo. Lá isso não era necessário, nem aconselhável. Sobretudo para a denúncia de briga de casal. Uma simples e rápida conversa resolveria tudo civilizadamente - termo com o qual o Soldado implicava, por ser um militar e não civil.

O lado bom é que estava entre gente de bem, entre admiradores que tiravam selfies com os soldados em manifestações e que admiravam o presidente. Só não diria que se sentia em casa pois nunca havia visto casas tão deslumbrantes.

Tudo correu bem entre os dois passos que separavam a viatura da metade da calçada. Antes mesmo de pisar no gramado que levava à porta de entrada o Soldado foi surpreendido pelo proprietário que abriu a porta aos berros. Desde que entrou na polícia nunca havia sido tão insultado, arriscava dizer que nunca na vida havia sido tão humilhado.

Foi chamado de filho da puta, de corno, de merda do caralho. Ouviu xingamentos e ameaças que não toleraria nem do próprio pai. Ah, que saudade da periferia…

Achou melhor não criar caso. Não era covardia, era um recuo estratégico. Alguma explicação apareceria para tudo aquilo. Talvez um mal entendido. Até o presidente baixa a cabeça e se cala quando o Trump quebra promessas e o prejudica. O importante era respeitar a autoridade e todo mundo tem uma autoridade à respeitar.

O Soldado teve um dia ruim, mas passaria. Talvez tenha sido algum engano e tudo seria resolvido da melhor forma, afinal, eram todos pessoas de bem. No dia seguinte, com sorte seria encaminhado para a periferia e poderia se livrar de todo aquele estresse.

Sim, tinha a certeza de que era uma peça fundamental na manutenção da lei e da ordem, principalmente diante de baderneiros que tentavam barrar o avanço do país. Não seria um pequeno detalhe que o desviaria do caminho certo. Para isso se tornou Soldado e ninguém atrapalharia sua missão.

Com olhos marejados, pensou que não foi por acaso que o governo protegeu o Trump e defendeu a polícia na ONU. Todo mundo tem uma autoridade à obedecer e o importante era manter a lei e a ordem. Talvez o homem de Alphaville estivesse mesmo correto. Para que chamar a polícia para uma briga de casal? Deve ter sido coisa de mulher histérica, que surta por qualquer coisinha.

O dia seguinte seria da periferia. Ah, que saudade da periferia...

2 comentários:

  1. Legal, me lembrou o greg news episódio polícia.
    Vc viu? Ele é chato, mas fala umas coisas interessantes, as vezes.

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  2. poderia ser apenas ficção, mas infelizmente é uma realidade...

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