quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

LA MANCHA de sangue

 

Pablo Picasso (1)

Por Elisabeth Guimarães

O termo "quixotesco" em alguns dicionários refere-se a quem é generosamente impulsivo; sonhador, romântico, nobre, mas um tanto desligado da realidade. Desligado da realidade? Nada mais equivocado. Nossos inimigos não são imaginários. As tragédias que acometeram os EUA por ocasião do assassinato de George Floyd, e o Brasil com o assassinato de Marielle Franco, de João Adalberto e de tantos pretos e tantas pretas não só provoca lágrimas de indignação, saudade e dor, como nos desafia à ação. Os questionamentos mais instigantes são os que revelam indignação acompanhada de esperança. Alguns preferem o silêncio contrariado por outros que bradam. Os últimos acontecimentos despertaram mentes e corações; razão e emoção; alternadamente requisitados em busca de esperança e força.

De acordo com Gustavo Bernardo, doutor em Literatura Comparada, o oitavo capítulo de Dom Quixote de La Mancha (2) intitulado “Do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote, na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação” relata o emblemático episódio em que Dom Quixote teria tido sua mais contundente derrota. No entanto, o título do capítulo aponta para uma das principais vitórias do cavaleiro. E não é para menos. No episódio Dom Quixote luta contra moinhos de vento. Gigantes cruéis que, posteriormente, se revelam novamente como moinhos de vento.

Não estamos lutando contra moinhos de vento! Os gigantes cruéis estão aqui! De carne e osso respiram bem perto de nós; podemos sentir o hálito de suas vozes ameaçadoras; podemos ver suas mãos manchadas de sangue. O aparente absurdo não reside na ideia de o homem de La Mancha enxergar gigantes no lugar de moinhos de vento, mas em lutar sozinho contra todos eles, bradando: "Não fujam, criaturas vis e covardes, que um cavaleiro sozinho é quem os ataca". Assim, "lutar contra moinhos de vento" tornou-se, desde então, em todas as línguas ocidentais, o paradigma da luta por propósitos e causas. Não importa ao protagonista, entretanto, que a luta se apresente inútil, se a entende como necessária para o mundo. Justamente por parecer inútil ou perdida é que vale a pena. Como lutar? Com a força da palavra que move o mundo. Não importa se é uma simples palavra ou se é um tecido de palavras entrelaçadas por indignação, dor e saudade. Não estamos sozinhos! Não estamos sozinhas!

 “— Valha-me Deus! — exclamou Sancho — Não lhe disse eu a Vossa Mercê que reparasse no que fazia; que não eram senão moinhos de vento, e que só o podia desconhecer quem dentro na cabeça tivesse outros?”(2) Dom Quixote reage dizendo que as coisas da guerra, mais que as outras, estão sujeitas à mudança contínua. Na verdade, ele explica para o seu escudeiro, que o sábio Frestão transformou os gigantes em moinhos de vento para lhe roubar a glória da vitória. O ideal, a fé e a esperança inabaláveis de Dom Quixote nos seduz, nos convida ao despojamento da zona de conforto, da quebra do silêncio, da busca pela justiça. Ao fazê-lo, afirma o valor da liberdade, da igualdade e da fraternidade, enfim, do amor. Somos todos heróis, somos todas heroínas desta jornada. Nada nem ninguém podem calar nossas vozes e, se por um infortúnio o fizerem, ainda assim, continuaremos a pensar:

A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo é que todo mundo acha que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por que? Ora, porque ele tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual, criancice, etc. e tal. Daí é natural que seja perseguido pela polícia, pois não gosta de trabalho, sabe? Se não trabalha, é malandro e se é malandro é ladrão. Logo, tem que ser preso, naturalmente. Menor negro só pode ser pivete ou trombadinha (Gonzales, 1979b), pois filho de peixe, peixinho é. Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm mais é que ser favelados. GONZALES, 1984 - grifo nosso (3)

Exatamente na véspera do Dia da Consciência Negra acontece a morte por espancamento de João Alberto Silveira Freitas por um segurança e um policial militar fora de serviço, no Carrefour, em Porto Alegre. "Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão." Gonzales, 1984 (3). Entrevistado pela mídia, o vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) disse que não existe racismo no Brasil: “Digo com toda a tranquilidade: não existe racismo no Brasil. É uma coisa que querem importar [dos EUA], mas aqui não existe.”

Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto, elegante e com umas feições tão finas... Nem parece preto. GONZALES, 1984 - grifo nosso (3)

Diante dos acontecimentos reajo de todo meu coração, corpo e alma, energia e potência. O texto de Lélia Gonzales (3) intelectual, política, professora e antropóloga brasileira ao lado da fala de Mourão já diz tudo. Quero deixar aqui meu pesar pela vida de João Alberto, pela família de João Alberto, pelos amigos e amigas de João Alberto. Meu pesar por todos João Albertos, por todas as Marielles, por todos e todas vítimas da violência da polícia militar brasileira a serviço e fora de serviço.

A palavra dirigida a esses inimigos aparentemente gigantescos, sim, pode ser apresentada a eles, imaginariamente, como um moinho movido à esperança. Mesmo que nos rotulem de tolos e tolas, ingênuos  e ingênuas, quixotescos e quixotescas, não importa. Ainda temos a palavra sempre adornada pela responsabilidade de se revelar firme e doce ao mesmo tempo. Educada, consciente, inflamada, bradada se for preciso, mas nunca ofensiva nem preconceituosa. Este é um registro de esperança na voz brasileira que não precisa de herói; é heroína. Clarice Lispector fala por todos e todas nós: “A palavra é meu domínio sobre o mundo.” A premiada escritora e jornalista, nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira declarava, quanto à sua brasilidade, ser pernambucana. Avante, pretos e pretas! Avante brancos e brancas! Que nosso brado ressoe por todos os cantos do planeta!

1. Em 1955, o criador do cubismo dedicou um desenho a tinta do cavaleiro e seu fiel escudeiro. A história que se conhece desta ilustração revela que Pierre Daix, amigo íntimo de Picasso, lhe pediu um desenho para a revista Les Lettres Francaises pelo 350º aniversário da publicação de Dom Quixote. Pedido atendido por Picasso na mesma hora. A revista foi publicada em 10 de agosto de 1955.

2. Cervantes, Miguel de - Dom Quixote de La Mancha (1605) - Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho.

3. GONZALES, Lélia. “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”. Artigo apresentado na Reunião do Grupo de Trabalho “Temas e Problemas da População Negra no Brasil”, no IV Encontro Anual da Associação Brasileira de Pós-graduação e Pesquisa nas Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1980, In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.

Um comentário:

  1. Que continuemos tendo forças para lutar contra nossos problemas GIGANTES, Beth! Ótimo texto!

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