Por Gilberto Amendola
Noves fora, Carolina deixou um retrato.  Nada escrito do outro lado.  Nem marca de batom. 
Procurei outra pista. 
Alguma coisa escrita com creme de barbear no espelho do banheiro.  Ou papelzinho pendurado no ímã da geladeira. 
Nada.  Nem cheiro. 
Acho que só tem disso no cinema.  Vida real é outra esquema. 
Carolina, dos olhos verdes da cor de um marca texto, já está fora deste contexto.  Há tempos. 
Foi-se. 
Feito brasa de cigarro quando chega ao fim. 
No celular, a última mensagem tinha sido enviada ontem: " Atraso 30 mim, ok?  Bjs". 
Lembro bem. 
Sou eu, ali, entretido com guardanapos, fingindo origamis  transcendentais na mesa do restaurante.  Meio que dividindo minha  atenção entre as flores desmilinguidas ao redor da cesta de pães e o  relógio démodé pregado na parede. 
Ela atrasou duas horas.  Ou quase isso.  Não importa. 
Mas  quando Carolina chegou o que era irritação virou confete.  Ela estava  lá - e meu tempo desperdiçado não tinha o menor valor. 
Foi  ao banheiro antes de se sentar.  Voltou com os olhos vermelhos e  agitada.  Pediu água com gás e aceitou minha sugestão de vinho sem muita  empolgação.  Estava com pouca fome, mas iria tentar o salmão. Eu  também. 
Falamos do último disco da Suzanne Vega; dos velhos poemas de Paulo Leminski e do meu talento para origamis  pós-modernos.  De resto, silêncios e comentários sobre a comida, o  vinho e o desleixo do garçom.  Ela sugeriu terminar a noite ouvindo jazz  no meu apartamento.  Eu disse sim - e agradeci a Deus pela graça  alcançada. 
O  que aconteceu depois eu já contei.  De manhã, só me restou o retrato de  Carolina - e a certeza imprecisa de que de nada adiantaria revirar a  casa, o bairro, a cidade ou o planeta. 
Ela tinha ido embora. 
Me esforcei em fingir que tudo estava no seu devido lugar. 
Banho, armário, café forte, carro, trabalho, reunião e um desejo de permanecer inconsciente durante um mês inteiro. 
Era como se eu tivesse sido tocado pela bruxa mais agourenta. 
Vai  ver Carolina teve um apagão; vai ver bateu a cabeça no portão; vai ver  morreu num acidente de caminhão; vai ver já não está nem mais aqui - e  foi morar num país de rima boba, um Japão da vida.  Talvez ela nunca  tenha existido. 
Mas  o retrato, que de agora em diante seria transformado em um valoroso  porta-copo, era a prova cabal de que Carolina era real.  Fui eu quem,  num momento de ousadia, soltei um 'psiu' e tirei a fotografia. 
Eu  captei num clique só.  Ela olhando pra trás - virando o pescoço num  relance e olhando pra dentro da minha câmera.  Bati a foto e senti o  chão do parque desaparecer debaixo do meu tênis de corrida.  Fiquei sem  graça. 
Mas ela riu. 
"Manda essa foto pra mim? "
Com  o e-mail da menina, que aquela altura já era Carolina, fiz o que me  cabia.  Primeiro fomos correr no mesmo parque, depois um filme do Woody  Allen e, por fim, o jantar.  Aquele em que fui surpreendido fazendo origamis transcendentais (fiz um cisne caolho e um girassol sem alma).
Éramos  dois estranhos: mesmo quando sugeriu terminar a noite no meu  apartamento; mesmo quando se interessou pela minha playlist de músicas  tristes; mesmo quando se atirou na minha cama como quem mergulha em uma  piscina de bolinhas. 
Carolina era surreal. 
Tentei o celular.  Só por desencargo de consciência. 
Nada. 
Voltei ao parque. 
Tirei fotos. 
Nada.  Nunca mais. 
Poxa... É uma puta injustiça um texto desses ficar sem comentário só pq é longo. Muito bom! Gostei demais!
ResponderExcluirPoético ... (Sur)REAL! Quantos encontros e desencontros não se encaixam neste texto? Gostei.Demais.
ResponderExcluirAmei
ResponderExcluirGilberto precisa escrever outro livro urgentemente. Desta vez, livro de crônicas. Apenas crônicas.
ResponderExcluirGilberto precisa escrever outro livro urgentemente. Desta vez, crônicas. Apenas crônicas.
ResponderExcluirSou fã do Gilberto Amendola. Eu amooooooo os textos dele. Eu quero ler um livro de crônicas dele. Ele precisa escrever algo assim urgentemente.
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