quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Dogmas sociais - parte 1.

Quando a última porta de acesso foi aberta e a lanterna iluminou a galeria, um exército de ratos cinzentos interrompeu o jantar e bateu em retirada. (...) O chão estava forrado de restos de arroz, feijão, pedaços de ovo frito e de linguiça calabresa que extravasaram das quentinhas atiradas para fora das celas em protesto contra a falta de luz e a má qualidade das refeições servidas. O cheiro azedo da comida misturado com o que vinha dos xadrezes era de virar o estômago. (...) Pediam que eu testemunhasse a insalubridade do recinto, a má qualidade da comida, e que os ajudasse a conseguir transferência para outro presídio. Reivindicavam com tamanha veemência, que parei para ouvi-los e levei tempo para chegar até o doente sufocado por um ataque de asma.


O trecho acima é do livro “Carcereiros”, de Drauzio Varella. Por coincidência era o que eu estava lendo nas semanas do Natal e Ano Novo. Digo por coincidência porque entre todos os clichês que permeiam essas datas, está o tabu do indulto natalino aos presos. Não escrevo para falar do indulto. Cada um que julgue ser a favor ou contra, de acordo com princípios e valores. Porém qualquer que seja o tema e o posicionamento, argumentos sólidos são fundamentais. O sistema prisional é um vespeiro dos mais agressivos, não há solução simples para um problema tão grande, mas vamos pensar em alguns argumentos frequentes:

1 – O problema é que a polícia prende e a justiça solta. Essa conclusão é curiosíssima, porque enquanto em 1996 a população carcerária do Estado de São Paulo era de 45 mil presos, hoje é de 220 mil. Lembro de uma cena do filme “Tropa de elite 2”, quando um personagem é extremamente didático ao explicar que mantendo o ritmo atual, em alguns anos toda a população brasileira seria encarcerada.

2 – Temos violência porque não tem punição. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. “Perdemos” para a China, que tem umas 6 vezes nossa população, e para os EUA, que também tem população maior e é um país extremamente repressor (o que não impede que de tempos em tempos alguém entre armado em uma escola, fuzilando estudantes).

3 – Preso tem que trabalhar para pagar o próprio sustento. Genial! Não é estranho que ninguém tenha tido uma ideia tão boa e elementar antes? Afinal, esses presos vão trabalhar onde? Ainda que a qualificação não fosse um problema, por menor que seja a taxa de desemprego da sociedade entre os cidadão livres, uma pequena porcentagem sempre existe. A ideia seria aumentar o desemprego demitindo trabalhadores para que o trabalho seja executado pelos presos? Não podemos esquecer que muitos trabalham na própria cadeia, cuidando da limpeza e da alimentação.

4 – O preso é sustentado pelo Estado, então prefere ficar lá. Se o primeiro parágrafo desse texto não for suficiente, o resto do livro é extremamente recomendado – tem capítulos até divertidos, mas muitas partes são de embrulhar o estômago. Ninguém é sustentado em uma cadeia. No máximo os presos se equilibram nos pequenos espaços e seguem a risca uma espécie de constituição federal particular das cadeias.

5 – Se cometeu crime tem que pagar. Não precisamos nem entrar no campo dos que foram presos injustamente ou dos que já cumpriram pena e seguem encarcerados por não terem condições de pagar um advogado que defenda seus direitos (esses continuariam “sustentados pelo Estado”, se o argumento fosse válido). Basta imaginarmos a tentativa de receitar sempre o mesmo remédio, independente da doença, variando apenas a dose. É mais ou menos isso o que acontece na prática. Quanto mais grave o crime, maior o tempo de encarceramento, como se isso tivesse algum efeito positivo sobre o preso (ou sobre qualquer coisa a ser analisada).

Enfim, não faltam argumentos e consequentemente contra-argumentos. Um problema tão complexo não se encerra em um pequeno post, tão pouco em uma mesa de bar, mas a coerência dos argumentos ajuda a boa argumentação. É possível que ao pensar o sistema carcerário, Michel Foucault seja mais elucidativo que José Luís Datena, nem que seja só para considerar algumas hipóteses distintas do habitual.

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