sábado, 22 de outubro de 2016

Glória e a louça

Glória hesitava diante do armário da cozinha. Almoçar ou não almoçar? Tinha fome. Conseguira saltar o café da manhã, mas estava difícil fazer o mesmo com o almoço. Olhou de relance para a pia e desviou o olhar assim que percebeu que suas retinas haviam registrado o que, na verdade, já sabia. A pilha de louça insuportavelmente se multiplicava por sobre a pedra de mármore. Almoçar significava contribuir com um prato, um garfo e uma faca para aquela angustiante montanha. Uma estratégia eficiente do que cozinhar poderia lhe poupar a faca, mas era pouco. Lembrou-se que ainda haviam as panelas. No armário, só uma frigideira. Todo o resto repousava de forma caótica sobre o fogão. E também havia o cheiro. Não era preciso terminar de cruzar toda a sala para sentir o odor nauseabundo que vinha da cozinha. Era o resto de lentilha que fermentava naquele calor fora de época de abril. Sempre o dilema do resto. Nunca o bastante para ser guardado na geladeira, nunca tão pouco a ponto de valer o esforço de ser jogado fora. O resto acabava ficando mesmo nas panelas e se transformando em cheiro. Divisou por acidente o cacto esquecido no balcão do armário e sentiu inveja dele. Glória quase nunca se lembrava de lhe servir água e ainda assim ele se mantinha intacto, forte e verde, como no dia em que foi parar ali, sem que para isso tivesse que sujar uma louça sequer. Felizes eram os cactos. Mas Glória não era um cacto. Glória tinha fome. E se poupasse as louças por mais aquela refeição? Olhou para a fruteira. Uma banana preta e os insetos que lhe faziam companhia. Talvez servisse para fazer doce. Mas doce sujava louça, muita louça, e Glória não queria lavar louça. De forma quase instintiva, afastou os insetos com as mãos. Glória dirigiu-se então à geladeira e os insetos voltaram a rodear a banana, nem bem Glória lhes dera às costas. Abriu a porta. Um pote de margarina pela metade, um vidro de requeijão praticamente vazio (mas que não descartara porque sempre pensava que podia render mais uma ponta de faca), alguns sachês de catchup, fruto da última promoção de esfihas de frango da rede popular de restaurantes árabes, uma cebola murcha e um naco de queijo ressecado. Glória pegou o queijo e o levou em direção às narinas. Não estava estragado. Glória tinha fome. Foi mordiscando pelo meio para evitar as partes secas das bordas. Depois foi com borda e tudo. Não bebeu água. Glória havia almoçado sem ter sujado uma louça sequer. Agora já podia voltar para o seu quarto e chorar até a hora do jantar.

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