quinta-feira, 12 de outubro de 2017

O barco fantasma (pulem mulheres)


Quando era pequena li o livro ''O barco fantasma'', é uma história simples, uma lenda inglesa sobre um barco no século XVIII que foi encontrado navegando pelo mar sem seus tripulantes.
Até hoje o chamam de ''o barco fantasma'', porque estava vazio quando outro barco o viu, subiram uns marinheiros e se assustaram quando perceberam que na pequena cozinha do barco, na mesa, tinha uma xícara com café quente e um ovo morno, o que os levou a concluir que era um barco fantasma, já que não encontraram rastros de ninguém ali.

Naquela época os registros dos barcos e seus tripulantes não eram tão rígidos, era um barco pequeno, cabiam menos de dez pessoas ali, o que levou todos a pensar que alguma coisa aconteceu no meio do caminho e depois os fantasmas tomaram conta do lugar.

Fiquei fascina pela história, gostava do detalhe do café quente e o ovo morno, pensava sem parar porque fantasmas preparariam um café da manhã?

Meu pai sempre me dizia que esse livro era uma versão da mesma história, de barcos pequenos e grandes, que navegam sozinhos pela imensidão, guiados por fantasmas e acabam alimentando lendas.

Já meu avô me contava que não existe parte no mundo sem lendas do mar, dos rios e barcos fantasmas sempre aparecem.

Fiquei anos pensando sobre o café quente e o ovo morno, até que já adulta li um livro que ''desmontava'' algumas lendas do século XVIII, e estava essa história.

Alguém achou um registro de um casal, talvez os donos do barco, que com alguns tripulantes saíram da Inglaterra, no meio do caminho seu barco foi abordado por piratas, que os levaram como escravos, por isso não tinha rastros de lutas no barco, nem sangue, eles devem ter sido dominados rapidamente. E uma moça aparecia na história dizendo que era a dona do barco, que embarcou com seu marido e confirmou que o barco foi invadido, mas ela ao perceber se jogou na água e começou a nadar, se afastando, dias depois foi resgatada por outro barco.

Lembro que contei ao meu avô e meu tio essa nova versão, eles deram risada e disseram que ''mulher vadia e mau-caráter, abandonou o marido a própia sorte''. Meu pai também achou um absurdo a mulher pular do barco, na base de ''dane-se''.

A mensagem era clara, até porque eu já tinha escutado ela a vida inteira, nós, mulheres, não pulamos do barco.
Nós embarcamos em uma história de amor e ficamos ali, não nos jogamos na água nem quando os piratas invadem.

Em uma conversa recente minha mãe me disse:

-Parece que você não quer ver ninguém casando.

Na hora não soube me explicar, mas depois me veio a imagem do barco fantasma, sou a favor de embarcar e viver a experiência, mas se precisar pular fora, pule. Não sou contra o casamento, sou contra levar a experiência até o fim, se não deu certo.

E escrevendo aqui que simples parece! Ora, qual o problema, pule!

Mas é o contrário do que nos ensinam, se subir no barco, se mantenha firme, sem importar as tempestades, barcos passam por noites perigosas e dias sinistros, mas você, mulher, pode levar esse barco ao seu destino.

Quem pula fora do barco são as ordinárias, interesseiras, vadias, frias e inconstantes mulheres, muitas vezes promiscuas e loucas por novas aventuras, as mulheres decentes ficam no barco, nem que ele encalhe, vire ou pegue fogo.

E somos tão doutrinadas na ideia de não pular fora do barco que perdemos o momento, não temos margem de tempo para pular, é apenas um segundo, ali ou nada, e deixamos passar.

Uma amiga da minha mãe estava vivendo um inferno no casamento, naquela época minha mãe estava no México e vinha para o Brasil, sugeriu a amiga que largasse tudo e embarcassem juntas, depois pensariam o que fazer com esse marido violento.
Ela foi atrás de passaporte, fez tudo escondida, mas ele, era como uma fera, essa parte algumas mulheres desconhecem, mas homens ''sentem'' o cheiro dos nossos movimentos, ele se jogou ao chão e pediu perdão, ela sentou e escreveu uma longa carta a minha mãe, agradecendo o apoio, mas ele tinha entendido a situação e iria melhorar.

Ela não pulou do barco, se enrolou, ficou ali, teve filhos com ele e uma vida cheia de violência, recentemente começou a ter uns problemas sérios na cabeça, o diagnóstico foi ''constantes traumas na região'', resumindo ''apanhou pra caralho de um homem covarde''.

Já outra amiga da minha mãe fez o caminho contrário, conseguiu uma autorização para viajar com seu filho e se escondeu na nossa casa durante umas semanas, até que juntou o dinheiro e saiu correndo, também de um marido abusivo.

E não falo só dos homens que batem e são violentos verbalmente, falo daqueles que não cumprem seu papel na família e levam a mulher a um stress sem precedentes, sustentando a família, encarando a tripla jornada.

Falo de um medo muito comum nas mulheres ''o que meus filhos vão pensar de mim se abandono meu marido? Poxa, ele é ótimo pai''.

Pois é, o que as crianças vão pensar da mãe se a virem pulando do barco e abandonando o homem que juraram amar?

As mães esquecem que os filhos crescem e entendem a situação, eles percebem o massacre que a mãe sofre e se um dia tiverem a cara de pau de cobrar da mãe por ela ter pulado do barco, bom, a vida vai se encarregar de mostrar a esses mimados como as coisas funcionam.

E tenho tantas histórias sobre mulheres que não pularam do barco! Na minha família ninguém pulou, todas navegaram debaixo da tempestade e aguentaram firmes.

O problema é que navegar em águas turbulentas por um casamento ou um homem, não leva a lugar nenhum, não coloca coroa na cabeça de ninguém e nem tem o reconhecimento do Romeu, que acha a coisa mais normal do mundo uma mulher se arrebentar para manter o barco navegando por ele.

Tenho uma amiga que sofreu e sofre horrores no seu casamento, teve o azar de se casar com um ''doce de homem'', um poeta e ela trabalha em um banco, sustenta a casa, teve filhos e agora, apesar de cansada, não quer pedir o divórcio porque seria praticamente jogá-lo na rua, ele não tem família e minha amiga morre de medo dos filhos pensarem que ela é uma mulher fria, que jogou o pai deles no meio da rua, abandonando o rapaz na miséria.

Mas o lado dele ninguém vê nem julga, ele é meigo, eu entendo que seja pintor, poeta, o que for, mas tem filhos para sustentar e deveria se virar, se não faz isso não merece ter uma mulher que faça, mas quem fala alguma coisa, se ele é legal e jamais bateu na mulher ou filhos?

Qualquer movimento que ela fizer será considerado coisa de mulher calculista e vadia, que abandonou o homem que é ótimo pai e um marido fiel, mesmo que isso não coloque um centavo para o pão em cima da mesa.

O barco dela ficou preso, encalhou, qual a solução? O rapaz é uma boa pessoa, apenas não trabalha.

Falei que diante dessa situação existe uma possibilidade de milagre, que ele se encante com uma mulher mais nova, alguém que se deslumbre com suas poesias e vá embora com ela.

Ela teve chance de pular quando estava grávida, ele foi viajar para o Peru e se encantou com o lugar, ela não queria se mudar e resistiu, foi uma chance perfeita para pular, mas ele percebeu que não poderia viver no Peru sem o dinheiro dela e voltou ao Brasil.

E a história do barco fantasma me parece perfeita, se a moça não tivesse pulado, o que teria acontecido? Teria se tornado uma escrava dos piratas e com certeza teria sido estuprada por vários homens ou seja, não vale a pena ficar no barco, nadar sozinha é menos perigoso.

E ao pular escutamos os gritos de todos ''vadia, vagabunda, eu sabia que era piranha, quer dar para o vizinho, pedir uma pensão, ficar com apartamento, tem amante essa vaca, mulher que larga homem não presta!''.

Mas quem grita, quem ofende, não está no nosso barco, não sabe as ondas que enfrentamos e pior ainda, não a vale a pena o nosso esforço.

Queria tanto ter cinco anos de idade, com o conhecimento que tenho e me aproximar de cada uma das minhas tias e dizer ''tia, pula do barco, faça isso já''.

Todas minhas tias que não pularam do barco morreram na praia, abusadas por homens irresponsáveis, aqueles que as teriam condenado se elas tivessem pulado, as pessoas que as convenceram de ficar no barco, nunca ajudaram e já morreram, e algumas ainda enfrentam a recriminação dos filhos que dizem ''se meu pai era um merda, por que você ficou ali?''.

Barcos naufragam, apesar dos nosso empenho e não vale a pena se arrebentar navegando enquanto Romeu pega um sol.

É socialmente condenável uma mulher pular do barco, mas é aceitável o homem que acaba com a vida dela. Não adianta pensar que vamos mudar essa realidade discursando no barco, o jeito é pular.

Pular do barco nada mais é do que salvar a vida a tempo ou o que resta dela.

Iara De Dupont


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