sábado, 20 de março de 2021

A responsabilidade do governo

O vulcão La Soufrière, na ilha francesa de Guadalupe, no Caribe, está prestes a explodir. Especialistas não esperam uma erupção, mas uma explosão da montanha, com potência equivalente a cinco ou seis bombas atômicas.


Foram essas informações que levaram Werner Herzog para a ilha, em agosto de 1976. O cineasta alemão e mais dois câmeras contrariaram as medidas de segurança para registrar imagens que renderam o curta “La Soufrière”.

O governo da ilha já havia feito o mínimo que se espera. Protegeu a população local da tragédia, evacuando 75 mil habitantes. Os 17 mil habitantes de Basse-Terre, ao sul da ilha, não negaram o risco que corriam e acataram a evacuação. Herzog encontrou uma cidade abandonada às pressas, muitas casas ainda tinham eletrodomésticos ligados.

Ao caminhar pelas ruas, o silêncio dominava. Parecia até que a população levava a sério um lockdown para barrar um surto de Covid, caso o governo tomasse medidas para salvar a população da pandemia. Apenas os animais circulavam pela cidade em busca de comida.

Assim como na pandemia de Covid, Guadalupe tinha uma referência externa do potencial da tragédia. Em 1902, na vizinha Martinica, os sinais do vulcão Monte Pelée eram idênticos aos do La Soufrière, mas os moradores da cidade de Saint-Pierre, na base do vulcão, permaneceram em suas casas. A população queria fugir, mas em virtude de uma eleição, que já havia sido adiada, o governador não evacuou o local.

No dia 6 de maio daquele ano a cidade foi varrida por uma nuvem de gás quente e os 32 mil habitantes, carbonizados. Atualmente esse número de vítimas é o que perdemos em menos de duas semanas para a Covid. Ninguém em sã consciência quer ser responsável por tantas vítimas. Ainda que o governante seja um psicopata genocida, insensível a tantas mortes, existem as consequências legais dessa irresponsabilidade.

Nem um vulcão prestes a explodir é suficiente para alertar toda a população. Mesmo com o governo fazendo sua parte, Herzog encontrou em Basse-Terre três homens que se recusaram a sair. Seja por acreditar que tudo estava nas mãos de deus ou por acreditar no fatalismo da vida, simplesmente decidiram ficar. Por sorte não tinham poder político nem econômico para influenciar o governo a tomar medidas que prejudicassem a população, devido a crenças sem fundamento.

Desculpem o spoiler, mas preciso contar o desfecho. Inexplicavelmente o vulcão não explodiu, mesmo após sinais de intensidade nunca registrada na história da vulcanologia. O perigo diminuiu gradualmente e depois de algumas semanas a população voltou para casa. Todo o transtorno serviu ao menos para que o mundo voltasse os olhos para as dificuldades econômicas da população pobre da ilha de Guadalupe.

Herzog demonstra frustração com as filmagens que tiveram algo de patético por terminarem em completa futilidade. Nas palavras do cineasta, seu filme mostra "uma catástrofe inevitável que não aconteceu".

Compreensível na visão de quem esperava filmar uma tragédia sem precedentes, mas após 45 anos a história serve de lição. Lição de um governo que não brinca em serviço e não corre o risco de ver a população dizimada. Evacuar 75 mil pessoas implica em trabalho e custo elevadíssimos, mas é melhor entrar para a história por uma catástrofe inevitável que não aconteceu do que por uma catástrofe evitável que aconteceu.



3 comentários:

  1. Excelente texto, Alexandre! Gostei muito das comparações com o nosso momento atual.

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  2. Fiquei curioso em ver o filme.
    E com medo de ver o filme se repetir...

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  3. Obrigado! Eu já estou curioso pra ver os filmes que vão fazer sobre o Brasil atual... curioso e envergonhado!

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