quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Casa: um substantivo abstrato

Na sala, cortinas cor salmão que acumularam pó durante um semestre, enquanto esse apartamento de esquina esperasse para dividir o papel do contrato com o número do meu passaporte. Cadeiras desconfortáveis, uma mesa de centro que não combina com a de jantar e um lustre horroroso, mas digno do Palácio de Versailles quando comparado ao do quarto.

O colchão é mais duro que tijolo e não sei como podem as formigas subirem dezessete andares por dentro das paredes até chegar à cozinha. Mas o banheiro está sempre tão limpo que me sinto em Hogwarts. Uma Hermione provocada pela umidade trópica que se enreda nos meus cabelos assimétricos e, agora, anti-gravitacionais.

Durmo só com um lençol e sem meias em cima do colchão sem cama. Passo a noite toda presa naquele limite entre o frio e o conforto e acabo sonhando com narrações machadianas sobre a morte em vida até que a manhã me traz o salvo-conduto para vestir sapatos e uma blusa.

Minhas costas doem eternamente porque as malas são sempre mais pesadas do que deveriam. Um cachecol extra, uma troca de roupa de emergência, o presente coringa e um par de tênis caso o pé reclame em forma de bolha. Todos itens inúteis, porque cachecol só é preciso um, as peças de roupa não combinam entre si, o presente derrete esquecido dentro de um bolso e não há tênis que cale uma bolha bem formada.

Me enfiam em um ônibus, um carro, um bar, um avião, outro avião e perco a minha bússola. E então corro para voar sem saber aonde vou. Avisaria quando eu volto, mas não sei de onde saí. Meu laptop não quer conhecer mais novas redes sem fio e definitivamente não nasceu para o cabo encapado em azul.

Estamos eu e ele fartos dessa condição, mas cientes da inexistência de alternativas. Assim como os brasileiros não têm alternativa à desigualdade e os espanhóis não podem fugir do desemprego, nós também seguiremos carregando a casa nas costas. Nos três casos, a solução demanda subverter o sistema e, convenhamos, nenhum de nós tem coragem para tanto.

7 comentários:

  1. Heheh adoro como vc escreve.
    Não me é uma situação estranha essa..

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  2. será que não temos mesmo coragem?

    é...

    acho que não.

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  3. Puta que pariu que texto animal. Eu sei que coragem me falta, mas vontade, ah! a vontade, essa nunca foi tão grande como é hoje, e se ela continuar crescendo nesse ritmo a saída vai ser pegar a coragem pra criar e correr, bastante.

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  4. Ninguém tem coragem, entretanto, contraditoriamente, uns tem e outros não.

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