domingo, 4 de dezembro de 2011

SOB A MARQUISE, SEM GUARDA-CHUVA E LOUCO

por Gilberto Amendola

De repente era o amor sangrando o mar feito um navio pirata – com sua bandeira de caveira caprichosamente bordada por crianças órfãs e asiáticas. 
De repente era aquela mulher atracando no porto das almas encardidas – enjoada daquele balanço tedioso dos dias repetidos. 
De repente era o céu ensaiando uma tempestade – nuvens grávidas pairando sobre a cabeça dos distraídos. 
– Vai chover!, gritou um porta-voz do óbvio.
De repente era aquilo que o dicionário chama de epifania. 
Ou talvez eu só estivesse impressionado com o cenário, com as circunstâncias e com o horóscopo do dia. Bastava respirar fundo e procurar um pouco de clareza naquele devaneio de velho bêbado.
Em breve minha vida voltaria ao modo ‘bula de remédio’.
Em breve ela entraria num táxi qualquer, repetiria um endereço qualquer e sumiria em direção ao seu futuro qualquer. Longe desse presente indigno e sem guarda-chuva que nós dois nos encontrávamos. Ou melhor: dividíamos. 
De repente eu pensei em como seria bom ser um sujeito mais impulsivo, não pensar demais no constrangimento do próximo passo e mergulhar na piscina dos tubarões aleatórios.
– Você tem um cigarro? – ela me perguntou como se nós estivéssemos presos em um comercial picareta de desodorante masculino.
De repente eu percebi que o meu pulmão limpinho, purinho, inteirinho e escandalosamente saudável iria me matar.
Como eu queria ser uma chaminé de nicotina e tabaco, ter os dedos amarelos de tanto tragar ou o corpo coberto por aqueles adesivos caretas e inúteis. 
Procurei os cigarros no bolso – mesmo sabendo que eles nunca estariam lá. Acho que contando com um milagre ou com a intervenção de alguma fada sacana. 
– Poxa, acabou – sussurrei.
E notei, imediatamente, que o ‘poxa’ era uma expressão vergonhosamente infantil. Um homem de verdade nunca diria ‘poxa’. 
De repente ela agradeceu sem convicção e olhou duas vezes para o relógio – como se na primeira vez não tivesse acreditado naquilo que os ponteiros contavam.
Ela estava esperando alguém. Mas que tipo de alguém? Um tipo extraordinário, diferenciado, barba por fazer, óculos escuros e cigarro no canto da boca. Um tipo empresário, poderoso, confiante e cheio da grana. Um tipo que nunca seria surpreendido pela chuva.
Em breve ela entraria no carro dele. Eles trocariam palavras carinhosas. Ela contaria como foi sua viagem. Ele inventaria uma mentira convincente sobre o sábado à noite. Eles chegariam no apartamento dele. Ela iria clamar por um banho. Ele não deixaria. Os dois se amariam no sofá da sala – com a janela aberta e sem nenhum medo da curiosidade dos vizinhos do prédio da frente. 
De repente ela tira um livro de dentro da bolsa. Estiquei os olhos para identificar o autor. Torci pra ser um desses livros de autoajuda, um desses autores de best-seller, uma dessas bobagens da lista dos mais vendidos. Torci para que ela se tornasse desinteressante. Torci para que eu fosse, ao menos, intelectualmente superior.
Que nada. Ela estava lendo Anna Karenina. Senti um misto de humilhação e tesão. 
De repente ela reparou no meu desconforto. Olhou pra mim e, feito uma enfermeira aborrecida, perguntou se estava tudo bem. 
– Obra-prima – comentei.
– É – ela grunhiu com raiva.
Mas eu queria o quê? Uma resenha aprofundada sobre literatura russa? Ou fogos de artifício para comemorar o encontro de duas pessoas medianamente alfabetizadas sob a marquise de um fast-food nojento? 
Nada. O carro chegou. Ela guardou seu Tolstoi e foi embora. De repente eu me senti infeliz, como ninguém mais se sentiria. 

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