(por Gilberto Amendola)
É difícil identificar quando o primeiro sintoma apareceu. Até porque ela nunca foi uma mulher comum – sempre teve essa criatividade meio irascível, selvagem mesmo. Mas, se eu tivesse que organizar esse processo de forma cronológica, diria que ele teve início nos azulejos do banheiro da nossa casa.
É difícil identificar quando o primeiro sintoma apareceu. Até porque ela nunca foi uma mulher comum – sempre teve essa criatividade meio irascível, selvagem mesmo. Mas, se eu tivesse que organizar esse processo de forma cronológica, diria que ele teve início nos azulejos do banheiro da nossa casa.
Era uma versão urbana daquele passatempo infantil de descobrir desenhos no céu. Só que, em vez das nuvens, concentrávamos nossa atenção nos azulejos. Luiza dizia que esse tipo de atividade fazia o seu cérebro trabalhar de forma mais lúdica – ajudando-a na escrita dos seus poemas. Esse exercício resultou em um dos seus livros mais premiados, o ‘Da Privada’ (que, aliás, Luiza dedicou para mim).
A brincadeira terminou quando Luiza começou a visualizar demônios e seres bizarros estampados nos azulejos.Eu tentei levar esse surto com leveza – achei que, no máximo, ela escreveria poemas religiosos ou satanistas. Nada disso. Tive que reformar o banheiro inteiro e trocar o azulejo. Do contrário, ela continuaria incomodando um casal de velhinhos que morava no apartamento da frente. Sim, ela passou 3 semanas usando o banheiro do vizinho.
Quando eu achei que tudo se encaminhava para o esquecimento, Luiza começou a se comportar de forma estranha na cama. Sempre que fazíamos amor, ela tentava me matar. No começo, era uma mão um pouco mais forte ao redor do meu pescoço, depois mordidas que quase me arrancavam pedaço (acreditem, não era nada sexy) e, por fim, encontrei uma faca embaixo do nosso travesseiro.
Depois de uma discussão esquizofrênica e impossível de reproduzir aqui, Luiza me confessou que, toda vez que um orgasmo se aproximava, ela sentia um desejo quase incontrolável de me matar. E, ao não realizar o seu desejo, seu prazer sexual ficava incompleto.Claro, marcamos um psicólogo para o dia seguinte. Luiza não aguentou 30 minutos de sessão. Ela disse que tentaria resolver essa questão como sempre resolveu seus conflitos: escrevendo.
Nesta fase, Luiza começou a escrever poemas sobre mim. Bom, falando assim parece algo extraordinário. Mas não era. Neles, Luiza me humilhava sem dó. Por exemplo, ela poetizou a lista de homens com quem fantasiava quando estávamos fazendo amor (a lista contemplava de atores de Hollywood ao vizinho idoso que, na época dos ‘azulejos do capeta’ emprestava o seu banheiro). Em outro poema (em dodecassílabos), ela discorria sobre meus supostos insucessos sexuais. Embora ela não tenha lançado nenhum desses poemas em livro, Luiza não perdia a oportunidade de declamá-los em saraus ou festas de amigos. Alguns deles fizeram um relativo sucesso na internet (às vezes recebo mensagens com esses poemas na minha caixa de e-mail).
Claro, eu a amava. Eu suportei enquanto pude. Mas cheguei no meu limite. Como a casa era minha, pedi para que ela saísse. Não briguei, não gritei e não fiz nada radical. Apenas disse a verdade. Aquilo estava ficando insuportável e perigoso.
Luiza, para a minha surpresa, chorou, ajoelhou-se, e disse que não conseguiria viver sem mim. Me mantive firme – mesmo que, por dentro, estivesse totalmente arrasado e propenso a abraçá-la e tentar começar tudo de novo.No mesmo dia, Luiza foi embora. As notícias que tive sobre ela depois disso são desencontradas. Amigos em comum me disseram que ela tinha ido morar em uma comunidade hippie em Brasília. Outras pessoas próximas me disseram que ela havia virado budista e estava morando em Recife.
O fato é que nunca mais publicou nenhum poema (procurei em livros, revistas especializadas e sites). Não sei o quanto sou culpado pelo seu silêncio. A vida é mesmo um treco estranho.
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