líquido
adjetivo
1. fís. diz-se do estado da matéria intermediário entre os estados
sólido e gasoso, caracterizado por apresentar forças de coesão intramoleculares
mais fracas que as dos sólidos, e mais fortes que as dos gases.
2. que flui ou corre como água.
Era o segundo cigarro que acendia
em menos de quinze minutos. Assoprou a fumaça enquanto olhava de soslaio para a
carta fechada em cima da mesa. Tamborilava os dedos no tampo de madeira enquanto dava mais um trago.
Anne, 28 anos, solteira,
virginiana, ascendente em aquário. E quem raios escreve e envia uma carta hoje
em dia?!
Apagou o cigarro no cinzeiro e
ficou encarando o envelope. Ela sabia quem era, conhecia aquela letra cursiva
do diabo mais do que gostaria de admitir. E adorava e odiava aquela caligrafia.
Amor fati. Amor líquido. Tantas
definições apenas para esconder o quanto foi otária.
“Líquidos mudam de forma muito
rapidamente, sob a menor pressão. Na verdade, são incapazes de manter a mesma
forma por muito tempo. No atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos
são deliberadamente impedidos de se solidificarem. A temperatura elevada — ou
seja, o impulso de transgredir, de substituir, de acelerar a circulação de
mercadorias rentáveis — não dá ao fluxo uma oportunidade de abrandar, nem o tempo
necessário para condensar e solidificar-se em formas estáveis, com uma maior
expectativa de vida.” (BAUMAN, Zygmunt)
Levantou da cadeira e começou a
andar pelo apartamento.
“... Tudo para disfarçar o
antigo medo da solidão.”
Olhou para o chão enquanto
andava, os braços cruzados e inquietos.
Eventualmente, tudo o que queria
era não se sentir descartável. Aquela carta, e não precisava nem abrir para
saber aquilo, carregava uma série de feridas antigas, promessas que deixaram de
se cumprir e outras coisas largadas pelo caminho.
Não foi ela quem simplesmente
desistiu de tudo. A ela só coube encarar com dignidade e seguir em frente. É
isto o que fazemos quando acreditamos demais, fingir que superamos e aguardamos
silenciosamente pela próxima decepção, virando a esquina. Acender um cigarro,
olhar para os dois lados e atravessar a rua, uma parte sua torcendo para chegar
do outro lado enquanto todo o resto deseja ansiosamente pelo motorista
ensandecido que vai te fazer voar pela pista. Talvez quando você estiver no seu
leito de morte no hospital, quem você espera surja, falando o quanto você fez
falta.
Mas foda-se. Não vai acontecer e
ninguém perguntou nada.
E a carta ainda estava ali.
Chegou junto com as contas, como se fosse algo banal.
Talvez banal fosse mesmo a
palavra.
“As relações se misturam e se
condensam com laços momentâneos, frágeis e volúveis. Num mundo cada vez mais
dinâmico, fluído e veloz. Seja real ou virtual.
(...)
Vivemos tempos líquidos, nada é
feito para durar, tampouco sólido. Os relacionamentos escorrem das nossas mãos
por entre os dedos feito água”.
Olhou mais uma vez para o
envelope em cima da mesa. Inquisidor. Pegou o isqueiro.
“...as pessoas precisam sentir que são amadas, ouvidas e amparadas. Ou
precisam saber que fazem falta. (...) Ser digno de amor é algo que só o outro
pode nos classificar. O que fazemos é aceitar essa classificação. Mas, com
tantas incertezas, relações sem forma - líquidas - nas quais o amor nos é
negado, como teremos amor próprio? Os amores e as relações humanas de hoje são
todos instáveis, e assim não temos certeza do que esperar”.
Apreciou a carta enquanto pegava
fogo. Não precisou nem abrir para saber o que era. Se seu remetente tinha sido
covarde por tantos anos (e não era menos covarde agora), não cabia à Anne ser
corajosa ou forte mais uma vez. Pra que se dar a chance de se machucar novamente, por alguém que foi sem olhar para trás?
Não importa. Meios que justificam
fins inacabados só são detalhes.
E aquilo, num mar de promessas inacabadas, estava finalizado.
“E foda-se você” – disse, ao
acender o cigarro no envelope.
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