Neguinho não lê, neguinho não vê, não crê, pra quê?
Neguinho nem quer saber
O que afinal define a vida de neguinho
Neguinho compra o jornal, neguinho fura o sinal
Nem bem nem mal, prazer
Votou, chorou, gozou: o que importa, neguinho?
Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei, neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho
Se nego pensa que é difícil, fácil, tocar bem esse país
Só pensa em se dar bem - neguinho também se acha
Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro, um GPS
E acha que é feliz
Neguinho também só quer saber de filme em shopping
Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei, neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho
Se o mar do Rio tá gelado
Só se vê neguinho entrar e sair correndo azul
Já na Bahia nego fica den'dum útero
Neguinho vai pra Europa, States, Disney
E volta cheio de si
Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho
Neguinho quer justiça e harmonia
Para se possível todo mundo
Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo
Nego abre banco, igreja, sauna, escola
Nego abre os braços e a voz
Talvez seja sua vez:
Neguinho que eu falo é nós
Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei, neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho(Caetano/ Gal Costa)
nesta
semana, um médico me perguntou: "você acha que bebe demais?". e eu
respondi: "uma pessoa que bebe nunca acha que bebe demais". o médico,
silenciado, olhou para mim. parecia surpreso. acho que não esperava por
minha resposta. não espera uma mulher dizer que suas dores no estômago
podem estar relacionadas aos seus maus hábitos que se traduzem em
cerveja e coca-cola.
o mundo está muito chato.
eu
defendo muitas bandeiras. eu não aceito que dividam o mundo em azul e
cor de rosa. eu protesto contra o preconceito aos gays aos negros aos
pobres aos nordestinos. isso, das minorias. e desde sempre. muito antes
de ser moda. assombrei minha família amada quando disse em alto e bom
som que não via problema algum em ser gay. e quando me disseram que,
além de gay, havia a desconfiança da promiscuidade, eu disse apenas que
estava no script. e quem pode negar que é maravilhoso? muito
antes de ser politicamente correto. porque não gosto de nada do
"politicamente correto" e suas demandas. nunca fumei --- mas me assombra
o mundo que varreu os fumantes para as ruas --- entregues à própria
sorte da discriminação. Tatupai é fumante. e vez ou outra me preocupo.
não quero que ele morra de câncer. mas não querer que seu amor morra é
do humano. penso.
o "meu
problema" é que penso que passamos por uma higienização do presente que
por vezes me dá engulhos. estamos vivendo um revival mal feito dos
movimentos sociais dos estados unidos. agora, tudo precisa ter uma ordem
bem demarcada. como se, nordestina, precisasse proferir meu ódio aos
que odeiam os nordestinos, mas proferir de tal modo que pareça que
apenas reivindico o lugar que nunca tive. mas que lugar de reivindicação
é este? não é o meu.
odeio a
palavra bullying. a porra da palavra já prova nossa submissão às ideias
vindas não apenas de fora, mas em forma de onda. quando poeminha foi
ignorado por seus coleguinhas por gostar de pôneis, não pensei em
bullying. pensei que é do viver em grupo. e vi nisso a oportunidade de
explicar a ele que o mundo, às vezes, é bem feio. e que está ao nosso
alcance não sucumbirmos. ser feios como os que julgamos ser feios é a
pior das posições. acredito nisso. hoje nos impelem a nos afastar de
tudo que não tenha uma bandeira efetiva e visível. estou fora. falei
para o Poeminha: -------
não
quero o mundo no seu contrário. quero o suplemento. quero amar os
indígenas e os não indígenas. o branquinho e o negão. ou o neguinho.
quero amar as bichas. mas não como categoria. não quero nada em
categorias. e quero poder dizer que, se defendo bandeiras, me cansam os
olhares todos voltados para as bandeiras. tenho visto muitos enganos ---
e todos passam por este olhar "preservacionista" - amam os indígenas e
os negros paramentados de indígenas e negros. quero ver amar o neguinho e
o índio com seus cordões de ouro e prata e seus carrões
f1000qualquercoisa. pensam num mundo estático, como se todos não
estivéssemos neste movimento errante de esquecermos as próprias
tradições.
como ser
nordestina. ser nordestina é uma desgraça. cearense, então. o cearense
não tem o orgulho do pernambucano, do baiano, do paraibano. o orgulho do
cearense é ter sobrevivido a grande fome. somos um povo acanhado. não
temos o frevo nem o axé. vivemos do forró - que só teve seu período
áureo com luiz gonzaga e com o tal forró universitário. mas temos tanto!
e foi este tanto que esteve sempre comigo --- o que me permitiu estar
aquém ou além da estereotipia, a depender do momento.
em paris
fui arrastada pelo meu supervisor de doutorado que ao descobrir
aparentemente surpreso que eu havia lido a trilogia de beckett saiu me
apresentando como a brasileira que leu... e não esbocei nenhuma reação, a
não ser um sorriso amarelo de quem mal sabia falar a língua daqueles
que me passaram a ver como exceção. mas me vingo até hoje ao transformar
meu supervisor na mesma estereotipia::: um francês idiota que não sabe
que no Brasil se lê Beckett. o que quero dizer com isso é que todas
essas classificações tornaram o mundo muito chato. entendo a história.
indigno-me com a história. mas não. não estou a fim de fazer uma revisão
da história a partir de uma higienização do presente.
porque
batalhar pelas diferenças não é o mesmo que querer transpor tudo ao seu
contrário. não me alinharei nunca àqueles que nas passeatas defendem a
volta à ditadura. essa gente classe média que não me representa. e
defenderei até sempre um partido como o PT no poder --- falei ontem
mesmo:::: "se vocês pensam que esta universidade existiria se um partido
como o PT não estivesse no poder, é porque vocês não entendem nada de
política". e vou na marcha das vadias, nas paradas gays. sou a favor das
cotas. e meu filho não vai se beneficiar delas, porque ele não é
neguinho para os padrões brasileiros e eu não vou ter coragem de
mantê-lo na escola pública. mas não me peçam para fazer o jogo da
substituição. não me peçam para cooperar na instituição de uma nova
cultura --- que tenha como premissa o esquecimento das tantas culturas.
um
exemplo::: acho mais importante que o neguinho brasileiro leia o
branquinho guimarães rosa e o sarará graciliano ramos do que leia os
branquinhos agualusa e mia couto. e acharia diferente se o povo soubesse
fazer de outro jeito::: colocar tudo junto e misturado. mas só vejo o
contrário. uma parte de professores totalmente envergonhada, e outra
indignada, quando se fala em ensino da literatura brasileira, da arte
brasileira. agora, só pode ser literatura das minorias, arte das
minorias. como se nós mesmos não fôssemos uma porra de país que mal sabe
o que seja literatura, o que seja arte. que mal sabe quem foi
graciliano ramos e guimarães rosa, quem foi hélio oiticica. mas não:::
preferem que agora se saiba quem é mia couto e agualusa (incríveis, sem
dúvida, mas quem conseguir me provar que a prosa de agualusa vale um
dedo da de rosa, juro, como eu digo::: não corto o dedo do meu filho, mas corto o meu). porque estou falando de deslumbre: do momento ímpar de ler grande sertão: veredas e ficar chapada a vida toda a cada vez que lembra. e eu li barroco tropical,
do branquinho agualusa, e vi muito mais pretensão do que qualquer outra
coisa. fico cansada, juro. e não é nacionalismo. é política de leitura.
defendo que se estude literatura brasileira porque somos brasileiros. e
também norte-americana, francesa, italiana, africana, japonesa, porque
somos brasileiros e precisamos abrir o olho para o resto do mundo. não
para um certo mundo. mas para o mundo todo. me ajoelho diante de mia
couto como me ajoelho diante de beckett. é mentira ---- me ajoelho mais
diante de beckett de dostoiévski de kafka. e que se dane o fato de eles
terem nascido na europa branquinha. são neguinhos como eu.
quero
estar no entremeio. por que diabos não posso? por que diabos não posso
ser uma mulher que desconfia que sua dor no estômago é do excesso de
cerveja e coca-cola que ingere? ou não. e não sou feminista nem defendo
uma masculinização, uma europeização do mundo. sou mulher. tenho uma
independência emocional que cultivo com orgulho e dedicação. e conheço poucas pessoas que a tem.
preciso ser amada por poucas pessoas. e mal me mexo quando me descubro
não amada. mas sou mulherzinha também. cuido da casa. lavo a roupa da
casa. passo a roupa da casa --- isso significa que quando o tatupai está
aqui eu cuido dele. eu dobro as suas camisas e coloco-as na posição de
usar no guarda-roupa. mas Poeminha, quando tinha quatro anos, disse
espantado: "Papai, mulher cozinha!", porque nunca tinha me visto
cozinhar. porque é isso, né? a porra da diferença é isto. é branquinho e
neguinho tudo junto e misturado. é tudo cor. é tudo gente. é tudo
sentir na pele. e para mim, esta deve ser a política.
(hoje
recebi um abraço muito apertado. da moça que fez uns vinte tipos de
raios-x do meu corpo. junto com o abraço, ela me disse que desejava que
eu ficasse boa. disse que acreditava em Deus, que Deus era a cura. falou
abraçada a mim. e eu a abracei fortemente. agradeci com uma grande
alegria no coração. não era ali que teria medo do abraço de uma
desconhecida. mas não menti::: disse que não era religiosa. mas que
agradecia enormemente aquele abraço e aquele desejo que eu melhorasse. e
por fim, fiz a reverência de agradecimento: curvei os meus joelhos e
disse: "obrigada!". curvei-me àquele desejo diante da diferença. ela
tampouco titubeou. abraçou-me mais uma vez).
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(repliquei esta postagem, que já havia publicado em meu blog, não apenas por falta de tempo de escrever, mas por achar que essas discussões devem ser feitas continuamente)
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