quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Mariza

Banksy
Finalmente, 14 anos. Lembro-me detalhadamente. Mal havia completado a fatídica idade, quando Marineide me disse que eu devia levar a carteira de trabalho no dia seguinte. Estava ansiosa, além de ajudar mamãe nas despesas de casa, poderia me dar ao luxo de pensar em comprar coisas supérfluas, como creme de pentear cabelo.

Sim, eu me lembro. Às quatro e meia, estávamos lá no ponto de ônibus, religiosamente, eu, Marineide e alguns vizinhos. Ainda que fosse ingênua, não era estúpida em imaginar que a fábrica fosse um lugar lindo e confortável, mas quando a vi pela primeira vez foi um baita desgosto... Um portão velho e enferrujado abria caminho por um labirinto de outros corredores estreitos, escuros e mal conservados. O nosso local de trabalho, o salão principal, tinha as paredes com infiltrações, era mal ventilado e cheirava a mofo.  Foi uma decepção, pois não estávamos na “cidade”? Não era lá o lugar de civilização e modernidade?

O seu Ami nunca me olhou nos olhos. O seu tom de voz era sempre igual, monótono. Eu odiava o cheiro de naftalina que exalava dele. Mas nunca me recusei a obedecer suas ordens, ao contrário, exercia todas as atividades com eficiência e era reconhecida por isso. A nossa rotina era na mesa de produção: eu cortava os excessos de linha de costura, Marineide agrupava as peças com elásticos.

Além dessa rotina básica, havia outra: Fátima e Maria revistavam todas nós, na hora do almoço e também na saída. É que era a regra mais básica da casa, se alguém fosse flagrada furtando alguma peça, era demitida na hora por justa causa.E poderia ser acusada de furto qualquer funcionária que usasse a calcinha produzida na fábrica, afinal, quem acreditaria que qualquer uma de nós teria dinheiro suficiente para comprar algo tão caro? Certa vez, Lucimara teve que abaixar mais as calças e revelar a etiqueta, porque a estampa era “suspeita”.

Em geral, nós quase não conversávamos durante o expediente. Era 9 de abril, quando chegou um carregamento novo que trazia peças com lindas estampas de fundo escuro e flores amarelas delicadas. Foi impossível conter comentários de admiração frente à beleza do produto, não sem um toque de pesar, porque nunca teríamos o direito a desfrutar daquilo que produzíamos.

Lá fora chovia muito forte. A região alagava, mas nunca o suficiente para nos alcançar no salão de produção. Naquele dia, porém, a água ameaçava estragar toda a mercadoria. O seu Amnon, dono da fábrica, coçava a cabeça, nervoso. As meninas corriam pra lá e pra cá, todo esforço para salvar as peças, mas eu não: fiquei paralisada. Não pensei em nada em especial, apenas fiquei imóvel, observando a correria.

No dia seguinte, logo após bater o ponto, o seu Ami veio ao meu encontro e disse para eu passar na sala do seu Amnon. Fui tranquila e inocente, sem imaginar que o motivo do chamado era uma carta de demissão. Ele disse apenas onde deveria assinar e tirou do bolso algumas notas de cruzeiro. Eu continuei de cabeça baixa e calada, apenas obedeci suas instruções, minha última obediência. Tive tempo de passar na sala de produção e acenar para Marineide, “estou indo pra casa”.

Ao sair da fábrica, me senti tão aliviada, como se tivesse tirado um sapato apertado. Comprei um pacote de amendoim açucarado e saí sorridente até o ponto de ônibus. Mas eu tava cheia de pensamentos e emoções, precisava andar. Caminhei quilômetros até chegar em casa.

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