Os convites de casamento se acumulavam sobre a mesa da sala:
“Virgílio e família”. Os anos de dedicação e carinho aos tios, primos,
sobrinhos, amigos e vizinhos renderam uma boa coleção de caligrafias, pedaços
de tules, e papéis cartão em tons diferentes de bege. Na cozinha, o único som
era o da geladeira, que mesmo sendo um modelo novo e silencioso, era mais
barulhento que os próprios pensamentos.
Na sala, sentava-se de frente para a televisão, mas não
ousava tocar no controle remoto. Mantinha-a sempre desligada. A programação era
sempre a do seu próprio reflexo. Quando estava escuro, as únicas imagens eram a
de suas memórias.
Sua rotina era composta por quatro principais eventos: acordar,
ir ao banheiro, comer e dormir. Não necessariamente nessa ordem, e com
repetições de ações. Fora isso, tentava andar de um lado para o outro no
corredor da casa após o almoço para fazer a digestão. Às sextas-feiras, tinha
fisioterapia.
Em suas viagens diárias ao passado, lembrava-se
especialmente de sua mãe. Às vezes, em visita da neta, nos momentos em que seus
caminhos se bifurcavam, ou quando suas sinapses já não funcionavam, agarrava a
mão daquela moça que estava ali à frente e chamava por sua mãe. “Mamãe, mamãe,
mamãe”. Voltava à realidade quando entendia quem era ali – “Tudo bem, vô?”, perguntavam
os olhos gigantes, porém delicados, e as mãos firmes. Respondia que sim com a
cabeça. E logo voltava-se para a programação normal.
Morreu dormindo, logo depois de ter chamado pela mãe, como
insistentemente fazia nos últimos anos. Aparentemente, dessa vez ela havia
ouvido seus chamados. Deixou a esposa sem rumo, que acabou tomando seu lugar no
sofá.
Mais ativa que era, ela ainda estendia as caminhadas até o
mercado do centro, para buscar sua marmita diária na hora do almoço – não fazia
mais sentido fazer comida para si mesma – fazia seu croché e caçava palavras
nas revistinhas de bancas de jornal.
Agora, o neto mais novo fora morar com ela, mas ainda tinha
dúvidas frequentes de quem era ele – o neto ou o filho? Dizia, sempre risonha
para o resto da família em suas visitas semanais: “dessa vez eu juro que paro
de chama-lo de Lúcio. É o Ju.” Segundos depois, desistia da sua proposição. Era
o filho. Ao telefone, dizia à neta: “hoje fui almoçar com o Tio Lúcio”.
Mantinha suas tentativas frustradas de acertar. Sempre
tivera medo daquele cara alemão que saía por aí roubando as memórias e os
afetos. Era o Alzheimer, lhe diziam. Por isso, pegava firme nas caça-palavras.
Essa semana se sentiu estranha pois visitou um lugar que há
muito não ia. Viu pessoas que há muito não encontrava. Teve a impressão de que
fora ao velório de algumas delas. Visitou o melhor carnaval de rua da sua
cidade, na época dos grandes bailes e das marchinhas. Dançou até dar calo nos
pés, paquerou o marido, que estranhamente ainda tinha as feições jovens, tomou
um porre de vinho, o único da vida. Pensando bem, agora eram dois, já que o
havia tomado de novo. Quando voltou para casa, o neto (ou o filho?) lhe levava
uma xícara de café e já não tinha mais certeza de onde estava.
Outro dia resolveu passar uns dias com a irmã mais nova,
essa tinha Alzheimer, coitadinha. Uma moça tomava conta dela durante o dia.
Tomavam café juntas e assistiam televisão. Mas, frequentemente era interrompida
pela pergunta: “O Virgílio já morreu?”. E tinha que, com paciência, responder
que sim, todas as vezes. Uma pontada no coração, um frio na barriga e uma
lágrima acompanhavam a paciência que tinha ao responder a irmã.
Mas seguia de cabeça em pé. “Estou ficando caduquinha”,
dizia à neta, “mas ainda tenho muita vontade de viver”. E no seu andar corcunda,
caminhava confundindo suas memórias, embaralhando passado e presente. Uma pena
é que as fotos digitais já não trazem a materialidade do passado, mas pelo
menos, os mais de vinte porta-retratos no móvel de entrada traziam algum
conforto. A foto de seu próprio casamento. Como estava bonita! E o Virgílio,
tão novo. Isso a fez lembrar de algo: olhou para uma pilha de papéis na mesa da
sala e começou a escrever a lista de presentes a serem comprados.
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