domingo, 22 de abril de 2018

Continho de merda


Maria vivia na merda, mas era bem quentinho. 

Fazia tempo que Maria vivia lá. Nem se lembrava o quanto. Um dia foi parar ali e por ali ficou. E dali jamais queria sair. Encolhidinha, sossegada, no seu canto. Havia o cheiro, sim, Maria admitia que havia. Aquele cheiro úmido e meio amargo que toda bosta tem. Mas era tão quentinho e confortável aquele canto meio melado de bosta em que Maria vivia, que ela nem dava bola para aquele cheiro. Às vezes dizia que até gostava, que aquilo era um aroma inspirador, era o preço afinal que se pagava por ter um cantinho tão confortável no meio daquela bosta toda, daquela merda tão fresquinha que alguém (ou algum) certa vez deixou por ali e Maria logo tomou para si. Alojou-se por medo de que não fosse encontrar algo melhor, ao menos não tão cedo. Medo não, por pura perspicácia, senso de oportunidade. E Maria era esperta, precavida, ajuizada. Maria não era boba de perder a chance de se envolver naquela bosta toda. 

É certo que também haviam as moscas. De tempos em tempos elas vinham e aquilo não era bom. Pensando bem, era até um pouco opressor. Mas Maria se acostumava com isso também, afastava as moscas como dava e com o tempo até passou a se acostumar com aquelas companhias. Do cantinho em que estava, Maria podia ver as moscas sondando a bosta e às vezes até se melando um pouco em seus trechos mais pegajosos, as patinhas todas salpicadas de merda mole. Aquilo era até divertido. Como estar na bosta era bom, pensava Maria, aquilo lhe rendia mesmo prazeres indescritíveis, como inebriar-se naquele odor pitoresco ou apreciar o regojizo das moscas. Maria era alguém de muita sorte por viver naquela merda. Aquela merda era o melhor lugar do mundo! 

E era tão confortável a bosta toda em que Maria estava metida, que ela nem botava a cabeça pra fora, nem se lembrava (ou se forçava a não lembrar) que além da merda em que estava, havia um jardim enorme, onde um dia aquela bosta fora deixada. Era só Maria levantar um pouquinho a cabeça que já daria para ver o imenso do jardim ao redor. E lá fora era tão grande e tão assustador que era difícil ter a coragem de se desgrudar daquele bom pedaço de bosta e aceitar, enfim, aquela aventura toda, a aventura que seria se desgrudar da merda e seguir. 

Até que um dia aconteceu. E só aconteceu porque Maria não pôde fazer nada, absolutamente nada, para impedir que acontecesse. Aconteceu de alguma força estranha, dessas que movem o mundo, completamente alheia à vontade e ao controle de Maria, a ter lançado longe, a ter cuspido pra fora da bosta quente, em direção ao assustador jardim. Maria, ainda toda respingada de merda, mas já sem aquele peso e calor que antes a envolvia, ficou desnorteada. Não sabia o que fazer diante de tanta insegurança, desprovida que estava da bosta que tão confortavelmente a acolhia, a afagava, a protegia. Maria não saberia viver sem aquilo e a primeira coisa que pensou foi em voltar de onde veio e procurar a bosta de novo. Mas ela já não podia voltar. A bosta já não existia tal qual Maria havia conhecido, já era um arremedo daquela bosta que antes a envolvia. Era uma bosta escangalhada pela mesma força que lançara Maria longe. Não tinha jeito. Maria teria que encarar as aventuras e perigos que o jardim lhe apresentava. 

E como Maria não tinha saído da bosta com suas próprias forças, com cuidado, mas sim de uma hora para outra, lançada por forças estranhas, não foi sem ferimentos que ela chegou ao jardim. Ferida e toda lambuzada de bosta, o que a fazia lembrar a cada momento da merda de onde tinha vindo, da merda que já não existia. Sentiu raiva. Sentiu medo. Sentiu culpa por não ter conseguido evitar de ser lançada longe daquela bostinha tão boa. 

Demorou, mas um dia Maria conseguiu aceitar que agora teria que lidar com o jardim. A vida na bosta tinha mesmo ficado para trás. 

Foi então que ela começou a caminhar pela grama e percebeu que conforme andava, a bosta ia aos poucos se desgrudando de seu corpo e a deixando livre para sentir a brisa cada vez menos assustadora que lhe atingia diretamente a face. 

É preciso dizer que haviam montes de bosta espalhados aqui e ali e Maria, vez ou outra, até se deixava pisar em um ou outro, com mais ou menos intensidade. Mas o melhor é que em nenhuma outra oportunidade Maria caiu na tentação de atolar-se fundo na merda novamente (ou no caso de ter se atolado, saiu tão rápido ou escondeu isso tão bem que ninguém ficou sabendo). Havia muito mais do que merda por ali, afinal, coisas e cheiros e texturas e sabores que Maria nem sabia que existia. 

Atolou-se naquilo tudo. 

O jardim era imenso e a vontade de explorá-lo inteiro só crescia. Já não sentia nem mais o cheiro de sua antiga vida na merda.

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