Eu vi um menino correndo, eu vi o tempo. Na
verdade, não vi nada disso: moro em um prédio pequeno cercado por imensos
edifícios comerciais. O sol que ilumina a sala é um simulacro, reflexo do vidro
espelhado de algum consultório. Acesso um trecho imensamente pequeno do céu,
uma ou outra estrela e a lua que dá o aro da graça a depender da época do ano.
Da janela sobre a minha mesa de trabalho, no horizonte que termina no próximo
quarteirão, um grupo de urubus vigia a cidade do alto de uma dessas torres.
Sei que dali deitam a vista até o norte longínquo dessa capital. Por vezes
desconfio que olham cá dentro, mancomunados em planos de invadir a vida humana
antes mesmo do seu fim. Ou talvez estejam apenas esperando aqueles momentos
desprevenidos em que caminhamos nus sem que a cortina esteja fechada. Pretensão
à toa supor que estão preocupados conosco: têm um mundo inteiro de estímulos
visuais para reparar.
Abro janelas virtuais, por onde passeio sem sair da
cadeira. Mesmo antes do isolamento gostava de caminhadas cartográficas, tenho
desde sempre atração por mapas e guias: estradas, ruas, rios, distâncias. Um
prazer tátil de passar a ponta dos dedos no papel, fechar os olhos e deixar a
aleatoriedade do movimento indicar um local. Com os mapas virtuais, minha
curiosidade ganhou de presente a possibilidade de enviar uma espécie de avatar
para dentro da cidade. Agora mesmo solto o pequeno boneco sem escolher o chão.
Caio em Kampala, capital de Uganda. E explodindo intimidades, sou arremessado
ao quintal de uma casa feita de restos de madeira e papelão. Um homem mexe em
um monte de entulhos. O que busca? Sabe que está sendo vigiado – não por mim,
mas pela máquina que o reteve naquele instante? Atravesso as vias (não sei como
nomear os espaços informes, talvez não sejam ruas, apenas passagens). Encontro
um casal de pessoas muito brancas andando entre as vielas. Serão turistas?
Participantes de uma organização internacional? Burgueses conferindo seus
domínios? Dou um salto e logo estou em outra paisagem, casarões e ruas
asfaltadas. Por um instante fico em dúvida se não estou confundindo e
observando um mapa de São Paulo. Não: é a miséria globalizada. Aqui e lá
herdeiros de violento processo colonizador (redundância, eu sei!). Tento seguir
em linha reta e aterrisso em Piatra Neamt, cidade romena cercada por morros.
Tomo um susto com a mulher de chapéu que surge em primeiro plano. Ao redor,
prédios baixos e a luz de uma cidade litorânea que está deslocada do mar. De
águas, apenas presença do rio Bistrita. E lá vai o pensamento tentando
encontrar referências no já conhecido: parece Itanhaém? Mongaguá? Meu
coração não é maior que o mundo, como escreveu Drummond. Nele mal cabe a
geografia dos meus arredores.
Neste apartamento, em época de passos assustados
com o exterior, me atento à paisagem sonora: o cão do andar acima arranha o
chão. Alguém caminha no corredor, o salto ritmando com o sabiá-laranjeira
ajeitado no muro. Há uma louvação pedindo a deus que também volte sua
curiosidade para esse território. Uma criança ri. A lava-roupas dá vontade de
cantar. Quando o silêncio é denso, os pingos dentro do filtro de barro
conversam uma prosa arrastada com os ponteiros do relógio. O som de uma janela
se abrindo com força: um homem no prédio vizinho coloca a cabeça para fora,
respira fundo, percebe que eu o observo. Fazemos um sinal mútuo e mudo e seguimos
cada qual na sua existência, independentes de observadores. Somos paisagens.
Que lindo! Muito boas as camadas de enquadramento dentro do texto/visão. Massa demais.
ResponderExcluirObrigado! Ficou bem visual, mesmo. Só percebi ao reler depois do seu comentário...
ExcluirNão costumo fazer esse tipo de tour virtual, mas até que você me deu uma boa ideia de atividade para a quarentena :)
ResponderExcluirÉ uma bom divertimento de "alteridade-geográfica". Ainda mais nessas horas de isolamento...
Excluircaminhei junto contigo, Tadeu! adorei o passeio <3
ResponderExcluirObrigado!!!
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