terça-feira, 16 de junho de 2020

PAISAGENS

 Eu vi um menino correndo, eu vi o tempo. Na verdade, não vi nada disso: moro em um prédio pequeno cercado por imensos edifícios comerciais. O sol que ilumina a sala é um simulacro, reflexo do vidro espelhado de algum consultório. Acesso um trecho imensamente pequeno do céu, uma ou outra estrela e a lua que dá o aro da graça a depender da época do ano. Da janela sobre a minha mesa de trabalho, no horizonte que termina no próximo quarteirão, um grupo de urubus vigia a cidade do alto de uma dessas torres. Sei que dali deitam a vista até o norte longínquo dessa capital. Por vezes desconfio que olham cá dentro, mancomunados em planos de invadir a vida humana antes mesmo do seu fim. Ou talvez estejam apenas esperando aqueles momentos desprevenidos em que caminhamos nus sem que a cortina esteja fechada. Pretensão à toa supor que estão preocupados conosco: têm um mundo inteiro de estímulos visuais para reparar.
Abro janelas virtuais, por onde passeio sem sair da cadeira. Mesmo antes do isolamento gostava de caminhadas cartográficas, tenho desde sempre atração por mapas e guias: estradas, ruas, rios, distâncias. Um prazer tátil de passar a ponta dos dedos no papel, fechar os olhos e deixar a aleatoriedade do movimento indicar um local. Com os mapas virtuais, minha curiosidade ganhou de presente a possibilidade de enviar uma espécie de avatar para dentro da cidade. Agora mesmo solto o pequeno boneco sem escolher o chão. Caio em Kampala, capital de Uganda. E explodindo intimidades, sou arremessado ao quintal de uma casa feita de restos de madeira e papelão. Um homem mexe em um monte de entulhos. O que busca? Sabe que está sendo vigiado – não por mim, mas pela máquina que o reteve naquele instante? Atravesso as vias (não sei como nomear os espaços informes, talvez não sejam ruas, apenas passagens). Encontro um casal de pessoas muito brancas andando entre as vielas. Serão turistas? Participantes de uma organização internacional? Burgueses conferindo seus domínios? Dou um salto e logo estou em outra paisagem, casarões e ruas asfaltadas. Por um instante fico em dúvida se não estou confundindo e observando um mapa de São Paulo. Não: é a miséria globalizada. Aqui e lá herdeiros de violento processo colonizador (redundância, eu sei!). Tento seguir em linha reta e aterrisso em Piatra Neamt, cidade romena cercada por morros. Tomo um susto com a mulher de chapéu que surge em primeiro plano. Ao redor, prédios baixos e a luz de uma cidade litorânea que está deslocada do mar. De águas, apenas presença do rio Bistrita. E lá vai o pensamento tentando encontrar referências no já conhecido: parece Itanhaém? Mongaguá?  Meu coração não é maior que o mundo, como escreveu Drummond. Nele mal cabe a geografia dos meus arredores. 
Neste apartamento, em época de passos assustados com o exterior, me atento à paisagem sonora: o cão do andar acima arranha o chão. Alguém caminha no corredor, o salto ritmando com o sabiá-laranjeira ajeitado no muro. Há uma louvação pedindo a deus que também volte sua curiosidade para esse território. Uma criança ri. A lava-roupas dá vontade de cantar. Quando o silêncio é denso, os pingos dentro do filtro de barro conversam uma prosa arrastada com os ponteiros do relógio. O som de uma janela se abrindo com força: um homem no prédio vizinho coloca a cabeça para fora, respira fundo, percebe que eu o observo. Fazemos um sinal mútuo e mudo e seguimos cada qual na sua existência, independentes de observadores. Somos paisagens.

6 comentários:

  1. Que lindo! Muito boas as camadas de enquadramento dentro do texto/visão. Massa demais.

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    1. Obrigado! Ficou bem visual, mesmo. Só percebi ao reler depois do seu comentário...

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  2. Não costumo fazer esse tipo de tour virtual, mas até que você me deu uma boa ideia de atividade para a quarentena :)

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    1. É uma bom divertimento de "alteridade-geográfica". Ainda mais nessas horas de isolamento...

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  3. caminhei junto contigo, Tadeu! adorei o passeio <3

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