E ao
desligar a televisão, você se assustará ao ver a imagem do Divórcio se formando
na tela preta. Ele olhará fundo para você e não te dará escolhas (ele nunca te dá) a não ser ouvi-lo.
Eu não
sou o que você vê. Eu não sou nada além do que você mesmo, envolto em sua
ciranda de medos, de lugares já visitados, de filmes repetidos, de projeções
caducas, carcomidas, eu não sou nada além do que projeções de sombras na
caverna. Você não é sequer capaz de me ver por inteiro, minhas concavidades,
pregas, sinuosidades. Você não vê mais do que meus contornos falaciosos,
fantasmagóricos, espectrais. Qual é o meu enigma? Eu já sei o que você vê, o
que você pensa quando ouve falar sobre mim, mas o que te escapa? O que é aquilo
que sua visão, cega de tanto ver, deixa evadir-se? Onde está o não dito, o
obscuro, o encoberto? Ao olhar para mim, é preciso procurar pelos brancos da
página, pelos silêncios da música, pelos matizes. Olhe para mim como quem busca
algo além do que já vê e demore-se nessa busca. Não procure o liso, o esférico,
o transparente, o homogêneo. Busque antes as arestas, os atritos, as tensões,
as rugosidades, o translúcido, as cambiâncias. Busque pelo erro, pelos desvios,
pelas inconstâncias. Eu estarei lá também, só que de um jeito que a visão
saudável não vê. Veja como o cego, Antônio! Tateie, machuque-se em terrenos
ásperos, esfole-se, sangre, pois também há vida na morte: Morra, Antônio! Se
sou sua primeira morte, aproveite e faça disso sua primeira ressurreição. Basta
deslocar um milímetro o olhar e a mudança se verá. Uma cor que estava lá e você
não percebia, uma pincelada mais leve, mais sutil. É preciso calibrar a visão,
regular os ângulos, mudar a posição, os pontos de fuga. O que te faz único,
Antônio? Qual é o modo de ver o mundo que é só teu, não reproduzível, aquele
que não cabe em moldes? É só quando olhar para mim de um jeito teu, é que fará
sentido ter morrido. E olhe para você mesmo como quem busca se desencontrar.
Mas lembre-se de bagunçar tudo antes de começar a arrumar. Aprendizados
demasiado rápidos são pedras que voltarão a rolar e triste será Sísifo mais uma
vez! Diante de soluções fáceis, eu prefiro a indeterminação que reside nos
canais mal sintonizados, nas imagens distorcidas, nas regiões de fronteira, nos
interstícios, nos desenquadramentos, nos estilhaços. Eu prefiro o “não sei” ao
“tenho certeza”, o “talvez” ao “jamais”, o titubeio à segurança irremovível.
Ser mutável antes de ser estanque. Cecília dorme no quarto ao lado. Com o que
ela estará sonhando? Com o que os bebês sonham? Será possível perceber um som,
um muxoxo, uma garatuja de sentido? Há mais verdade num monossílabo sonâmbulo
de um bebê do que no discurso inflamado de um ditador. Há mais vida na dúvida,
terreno das possibilidades infinitas, do que nas certezas, com tudo o que há
nelas de esterilidade. O que te faz crer que sabe tudo de Silvana é ser casado
com ela? É ter uma certidão de casamento? As pessoas não são monocromáticas,
homogêneas, não possuem perfeição trigonométrica, são antes números
irracionais, dizimas não periódicas, são ruidosas em suas imprecisões. Há que
se respeitar a
singularidade complexa dos seres, Antônio. O que importam as coisas além do que
aquilo que elas fazem mudar em nós? De que importa um divórcio senão por aquilo
que nos divorcia das versões repetidas de nós mesmos?
Sempre tive muita dificuldade em lidar com a dubiedade e a incerteza, mas assim é a vida. E quanto mais flexíveis e abertos ao talvez, mais "fácil" será nossa jornada.
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