sexta-feira, 16 de outubro de 2020

GLÓRIA

 

Ainda reverberava em mim as luzes que vira no correr do carro, a cidade acontecendo enquanto estive por seis meses entocado, me lançando, quando muito, a duzentos metros do prédio onde moro. Qualquer aspiração de uma esticada pelo bairro era logo contida pela ansiedade em retornar imediatamente ao apartamento, como se uma força me mantivesse gravitando na órbita dos meus cômodos. Preocupado com o vírus, acabei me acostumando com o mundo filtrado pela tela e me espantei quando, ao andar de carro, meu conhecimento teve um pequeno soluço sobre o funcionamento da máquina: como liga, quais os barulhos, quanto acelerar, para onde vamos? Então o telefone tocou. Não o celular, mas o fixo, aquele aparelho que eu já considerava morto, servindo somente de enfeite na parede. Atendi sem muita ansiedade, a voz confirmando meu nome e anunciando:

 - Aqui é da central de memória da Glória.

 

Muito mais de seis meses não pensava em Glória. Sua imagem, que um dia foi uma tela de fundo fixada em meus dias, agora era um fragmento que vez ou outra deixava-se entrever em segundos súbitos de aparição e sumiço sem vestígio. Glória e nossas horas. Glória e os planos que não pude considerar naquela época. Glória e seu beijo que quase me engolia o rosto – e como foi que me acostumei àquilo e queria ser engolido pelo enigma que ela me apresentava?

- Glória... é você mesma?

- Não, senhor. Aqui é da central de memória da Glória.

- Como assim?

 

Como assim? Era uma curiosidade que beirava o gracejo o jeito de Glória me perguntar sobre assuntos os mais variados que, sabe-se-lá como, surgiam após o sexo, o cigarro, o chocolate e o ventilador. Como assim, somos antigos, recordo de ela me indagar quando contei de um documentário que vira em alguma quarta de insônia. Eu também não tinha certeza de ter entendido o programa e expliquei gaguejante, como se fosse inquirido por um professor que me testasse a atenção: somos feitos de átomos, nós, tudo que existe. E os átomos que nos constituem são basicamente os mesmos desde que o universo nasceu. Ela baforou a fumaça em direção ao teto e esperou que o ventilador dispersasse todos os vestígios. Sem me encarar, continuou: como assim, nasceu?  Foi a vez do meu pensamento titubear, confuso entre o orgasmo recente, o álcool boiando por dentro e as palavras querendo me dar uma rasteira. Nasceu é modo de falar. Quando o universo surgiu, quando teve o Big Bang e tudo mais, quando foi surgindo nosso planeta e a vida, os átomos que estavam aqui no início ainda continuam aqui. Então nosso corpo é feito de resto de estrelas e também de qualquer algo. Você pode ser feita, nesse momento, de átomos que já foram do cachorro de estimação da infância de sua avó. Lembro da sensação de perceber o insólito dessa ideia quando a disse em voz alto, eu mesmo sem ter certeza do que falava. Ela sorriu e disse: bonito, isso. Bonito e assustador.

 

- A senhora Glória contratou nossa empresa para gerenciar sua memória de longo prazo. Somos especialistas em arquivar e administrar a memória das pessoas.

- Desculpa, não sei se...

- Conforme o senhor vai envelhecendo, suas recordações começam a perder a nitidez, correto? Algumas até se perdem por desuso, outras se enleiam com guardados de pouca importância e acabam por se contaminarem.

- Eu sei, eu acho que sei de tudo isso... Não sabia que era possível...

- Sim, é. Por isso a senhora Glória nos contratou e estamos implementando formas mais viáveis de arquivo.

- E por que estão me ligando?

 

Foi por telefone que nos despedimos, nossas pistas se bifurcando nos desejos, ela querendo o que não era minha vontade. Sem mágoas, sem promessas, da mesma forma que começou e aconteceu toda a relação, tão rápida no calendário quanto lenta na força da experiência. Quase agradeci, mas soaria feito um contrato.

 

- No momento a nossa cliente possui um pacote de serviços que não tem muito espaço, o que significa que estamos dando prioridade somente para o fundamental. O senhor deve imaginar onde se encontra nesse momento.

 

Onde é que me encontro, Glória? Seguimos nossos passos, encontrei outros corpos onde instalar minha imagem, outras vozes para ritmar meu cotidiano. Ainda te procurei nas redes sociais, segui seus rastros em um misto de curiosidade e nostalgia, mesmo sabendo que não haveria mais o que ser dito: nosso encontro foi acontecimento irrepetível cujas energias se guardaram, de certa forma, em algum lugar de nós. Como assim, dez anos? Ela saindo do banho, o assunto já era outro, mas o espanto ainda ecoava nela, uma onda vibrando sutil no pensamento: como assim, dez anos? Eu me entretinha com as pessoas que andavam lá embaixo, indiferentes à nossa existência. Precisei resgatar a frequência em que ela estava na conversa para retomar o assunto: é entre sete e dez anos. Nesse período todos os átomos do nosso corpo se trocam, se renovam, são outros. Não todos de uma vez, mas a ideia é essa. Glória sorriu de canto e perguntou entre um gole e outro de vinho branco quantos átomos teríamos trocado naquela noite. Agora, nessa noite penso que já trocamos tanto cada mínimo do que somos que podemos considerar como se esses corpos que agora somos nunca tivessem se encontrado. Não foi o seio que você tem agora que tive nas mãos; não foi essas costelas que agora me coçam que você marcou com sua unha. E, no entanto, ainda seria capaz de te reconhecer apenas com as pontas dos dedos. O que é que ficou de nós?

 

- Ela vai me esquecer? Completamente?

- Esse é o motivo de nossa ligação, senhor. Estamos com a promoção Revés. Adquirindo esse pacote de serviços o senhor pode manter sua presença com maior constância nas histórias da senhora Glória.

- Pago para que ela se lembre de mim?

- Se o senhor assim desejar.

- E se ela não quiser mais lembrar de mim?

- No momento ela possui só algumas cenas que ficaram retidas nos olhos dela. Mas com mais instantes chegando, ela não perceberá que você desapareceu de suas introspecções.

 

A voz robótica apresentou as vantagens do pacote que me oferecia, a validade do combinado e a duração que os clarões com minha imagem teriam. Poderia, se quisesse, acrescentar um upgrade há cada ano para que, talvez, crescesse nela o interesse em saber como estaria minha vida. Nossos átomos, novos e antigos, poderiam se encontrar como se inaugurassem outra relação, prenhe de descobertas. Seríamos nós outra vez, Glória. Ou o melhor seria deixar que nos espalhássemos para formar outros seres, outras perguntas, outros abraços, flores de antúrio, praias do Japão, chão marcado com pegadas? Não posso manter um pacote com esse valor, disse ao telefone, apreensivo com o raio que entrava pela janela e retratava naquele momento um homem em pé, segurando o telefone em uma das mãos e um cigarro na outra. Distraído com o passado, fechei um acordo sem perceber os detalhes, esses minúsculos grãos que mal registramos na consciência.

 

- Com esse plano eu ainda permanecerei nela?

- Uma vez por mês, em média, numa repentina memória entre um gole e outro de vinho branco.

Apaguei o cigarro, soprei uma última baforada em direção ao ventilador e me dei por satisfeito.

 

 

2 comentários:

  1. Adoro seus textos! E neste, o próprio se define: muito "bonito, isso. Bonito e assustador."

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  2. Grande pegada, Tadeu!
    Se alguém da Vivo/Claro ler o conto, certamente vão colar. Se já não o fizeram. A todo instante rememoro nossa turma. Bom demais!Bjseabracs.

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