terça-feira, 20 de setembro de 2022

Um cheiro perdido na memória

No prólogo do livro “O casaco de Marx”, o autor Peter Stallybrass conta sobre como se emocionou durante uma palestra e demorou para se dar conta do motivo. Sem perceber, usava o casaco herdado de um amigo. O cheiro da roupa teria despertado lembranças daquele que ainda deixava saudade.


Achei bonita a descrição, antes da obra analisar de fato a relação entre pessoas e objetos pessoais, a partir do casaco de Karl Marx – por vezes penhorado pelo proprietário, que tinha muito mais talento em analisar o capital do que em ganha-lo. Ainda assim tive minhas dúvidas.

Não tenho olfato dos mais apurados. Coleciono situações em que vendedores me apresentaram dezenas de produto distintos, que eu mal identificava. Incensos, para mim, tem cheiro bom, mas só um cheiro, que costumo rotular como cheiro de sabonete. Sabonetes, que para mim também só têm um cheiro.

Certa vez eu estava em uma loja de perfumes. Fui decidido, sabendo exatamente o que queria, mas me vi em meio a dezenas de papeizinhos monoaromáticos que a vendedora insistia em me apresentar após borrifar várias opções. Outra cliente chegou com uma pequena tira de papel, querendo saber qual perfume era aquele. Com uma cafungada a vendedora revirou os olhos, buscou na memória e pegou o frasco correspondente.

Considerei uma humilhação para meu pobre olfato indistinto. Para mim a tira de papel poderia corresponder a qualquer um dos perfumes da loja – ou a um incenso, que por sua vez poderia ser sabonete.

Resignado, nunca me dediquei a nada que dependesse de um bom olfato. Já me dou por satisfeito se identificar um vazamento de gás sem confundir com um escapamento desregulado de motores mais antigos. Não conseguiria me imaginar em uma situação como a Laura de Freitas, do canal “Nunca vi 1 cientista”, que afirma saber se falta sal na comida pelo cheiro.

Minha mais recente experiência com cheiros foi há poucas semanas. Comprei dois maracujás doces no mercado. Há muitos anos eu não comia maracujá doce e apesar de saber que o gosto é bom, não tinha uma lembrança tão precisa. Ao aproximar a fruta cortada do nariz tive um instante mágico.

Voltei trinta anos no tempo e me vi na casa dos meus tios, onde na infância comi maracujá doce até, sem fazer a menor ideia disso, fixar um aroma naquela lembrança afetiva. Aos poucos reconstruí todo o cenário do que vivi há tanto tempo, sem a menor certeza sobre o que aconteceu de fato e o que são retalhos de memórias ativadas e costuradas pelo aroma da fruta.

Já não duvido do sentimento de Peter Stallybrass. Entre tantos detalhes que podem despertar memórias, o olfato pode ser uma ferramenta poderosa. Ainda não aposto no meu talento para diferenciar cheiros, mas me sinto mais disposto a prestar atenção nos detalhes entre um aroma e outro. Quem sabe as associações afetivas não ajudam um pouco.

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