segunda-feira, 13 de julho de 2009

"Lis", ou "a imprescindível queda no degrau da escada"


O pai falava: não corre, porque senão você vai cair. Um dia caiu da escada. Então chorou muito. Chorou primeiro porque doía, e o coração disparara. Chorou, porque o coração parecia que não ia parar nunca mais, porque ao levantar tudo girava. Chorou por achar que tinha se quebrado, já que do joelho (que repuxava), o vermelho corria quente-rubro manchando meias brancas e sapatos, prêmios para um poder de andar recém-conquistado. Chorou porque teve medo de cair de novo. Porque o pai tinha dito para não correr. Porque tinha desobedecido ao pai, e ele a erguera, furioso, num só braço: Eu falei para você não correr! Chorou porque nunca mais ia poder correr, e tinha que, ridícula, suportar de pé a dor da queda, diante de um degrau feroz, impassível, que a mirava sem piedade. Chorou porque odiava-o, porque achava que teria que arrastar para sempre essa dor. Chorou por ver a irreconhecível cara do pai, cara que só devia ser cara de amor, não esse desgosto, esse dedo em riste, essa boca cheia de palavras. Culpava o pai, pelo que sentia (ela que sentia tudo intensamente), pois tudo era ainda tão novo, as mil possibilidades latejantes do existir: quem senão ele para impedir a dor da falha, o tropeço da queda? Ela quase que não pensava, só havia a perna, o sangue, e mais chorou. Chorou, porque queria continuar andando, porque ia precisar correr, porque tinha que cair para sempre. Chorou porque... Por que tinha ela que ter caído? Que outros caíssem, piores que ela. Ela não queria cair nunca mais. Chorou muito depois de ter caído. Chorou depois quando lembrou que tinha caído. Aprendeu a respeitar aquele ponto da escada. Ali, não mais corria. Aprendeu a correr de novo. Mas parava, com medo, diante do perigo (e não da ordem). Aprendeu a correr com medo. Aprendeu a cair e levantar. Aprendeu a cair e a chorar. A chorar sem cair. A correr sem chorar. E a chorar sem chorar*. Só parou de chorar quando o pai a tomou no colo e abraçou-a com força. Calma, ele disse. E ela foi com ele.


*[Nunca deixaria de ter medo, nem quando não houvesse mais um pai vigilante, um marido, um amor, um filho que pôr no colo, dar-lhe os seios da mulher que seria. Mas por enquanto, ela era apenas uma menina. E esta, a primeira lição.]

13 comentários:

  1. "Aprendeu a cair e levantar. Aprendeu a cair e a chorar. A chorar sem cair."
    O texto é simplesmente encantador!

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  2. uma alegria dia 13.
    gostei do texto. fluido, delicado, tocante.

    um beijo, edu.

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  3. E eu chorei. E eu me levantei e sai da sala pra ninguém perceber.

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  4. ... ela nunca deixaria de ter medo, mas pelo menos aprendeu a chorar sem chorar.

    belíssimo texto.

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  5. Muitas coisas pra chorar. Os seus textos são bem bons sempre.

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  6. belo texto Eduardo,uma delícia de ler,uma "coisa" assim calma,uma palavra puxando a outra,tudo muito bem encadeado,(que prosa-poética)
    Parabéns
    abs

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  7. 'chorar sem chorar' é uma das expressões mais lindas do mundo. é um ir e não ir, ou ser tudo e, ao mesmo tempo, nada.

    prosa-poética, como já disseram.

    .

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  8. lembrei de um dia da minha infância, que foi o dia que mais me enchi de coragem, e foi também o dia do maior tombo da minha vida.

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  9. "porque tinha que cair para sempre."
    .
    e eu também chorei.

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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  11. Ah, que coisa mais linda do mundo.
    Impossível não se reconhecer. Palavra de quem já levou muitos tombos (reais e metafóricos)

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  12. "...Chorou por ver a irreconhecível cara do pai, cara que só devia ser cara de amor, não esse desgosto, esse dedo em riste, essa boca cheia de palavras..."

    Quantas vezes é o numero certo de vezes que preciso chorar para reconhecer?
    Reconhecer que sem as expectativas que recebo e desmereço, não seria mais tão corajosa!

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