A manhã seguinte não admitiria insones, razão pela qual Matilde adiaria mais uma vez o capítulo final de seu livro sobre a voo das borboletas - era bióloga - e se jogaria na cama estivesse ou não com sono. Seu marido ainda não havia voltado da emissora - era animador de auditório - o que daria à Matilde a oportunidade, ao menos passageira, de ter o monopólio de sua cama de casal.
Banhou-se meticulosamente porque não queria macular a cama com tudo aquilo de mais fétido que a vida pública lhe havia legado durante aquele dia suarento. Pulverizou o lençol com essência de amêndoa fresca, a mais nova maravilha da linha de cosméticos que um dia ainda a levaria ganhar prêmios na TV. Programou o celular para as seis e três - lhe abominavam os números redondos - de modo que teria pela frente 8 horas e 12 minutos de puro regojizo. Deitou-se.
Enquanto afofava o travesseiro e o ajeitava de modo a lhe proporcionar o maior deleite possível, ia planejando, mentalmente, o dia seguinte, aquele em que receberia a comissão estrangeira para apresentar os últimos resultados da pesquisa que ela liderava. Iria sair meia hora mais cedo do que o habitual para não correr risco de chegar atrasada. Dispensaria o café da manhã com os colegas da universidade para dar mais uma repassada no material que iria apresentar para os russos - sim, eram russos... pensando bem - pensou bem, Matilde - era melhor ligar para a intérprete russa para confirmar se estava tudo certo para a manhã seguinte. Ainda eram pouco mais do que dez e era melhor ligar agora do que correr o risco de pegar a intérprete em pleno sono.
Levantou-se. Ligou para a intérprete que a atendeu com nítido mal humor na voz. Detestava ser interrompida de seus exercícios de calistenia. Sim, estava tudo certo para amanhã. Estaria na universidade às sete e meia, portanto, meia hora antes da reunião com os russos. Sim, ela sabia falar russo. Sim, ela sabia o endereço da universidade, já que tinha sido lá mesmo onde aprendera russo, no Departamento de Letras Orientais, nos anos 90. Não, ela não precisava ficar preocupada. Depois de um "desculpe-me o incômodo" de um lado e de um completamente falso "não foi incômodo algum" de outro, a ligação foi encerrada. Uma poderia voltar para os exercícios de calistenia e a outra - a que aqui nos interessa, quem tiver disposição que escreva a versão da intérprete - voltou para a cama, já que ainda teria 7 horas e 54 minutos para se refestelar em seu colchão King Size com molas ensacadas. Deitou-se.
Já não precisava preocupar-se em não ser compreendida pelos russos. Agora, podia dormir em paz. Mas, com tantas horas de sono pela frente, o mais prudente era garantir que suas necessidades fisiológicas fossem atendidas de antemão. Urinaria o que já estivesse a disposição em seu sistema excretor e encheria um cantil de água para que ficasse ao alcance da mão para o caso de acordar sedenta pela madrugada. Levantou-se.
Serviu-se do banheiro como de costume e partiu para a cozinha para encher o cantil. No caminho escutou a maçaneta da porta mover-se. Era o marido que chegava da emissora, ou seja, não conseguiria passar ilesa a uma boa meia hora de conversa. Se tivesse ficado na cama, esse inconveniente não seria necessário, já que teria fingido que estava dormindo e teria ganho um tempo precioso de sono. Entretanto, as necessidades fisiológicas se impuseram e lá estava ela, no meio da cozinha, conversando com o marido sobre seu dia.
- Terminou o livro?
- Não... quero dormir cedo. Deixarei as borboletas pra outro dia. Os russos vem amanhã...
- Que russos?
- Ora, os russos para quem eu apresentarei a pesquisa sobre os aracnídeos...
- Arac... o quê?
- Aracnídeos... bom, deixa pra lá. Não estou com cabeça pra isso agora. E você? Como foi hoje?
- Uma merda...
- Nossa, que boquinha, hein?
- Só teve pereba no concurso de calouros hoje... tive que pular feito macaco pra arrancar meia dúzia de aplausos daquele monte de gente desocupada... riram mesmo foi de mim quando a Maria Eduarda, aquela pentelha do Show Infantil, arrancou minha peruca e saiu correndo com ela na mão "hahaha... o tio é careca... o tio é careca.... tio cabeça de kinder ovo... hahaha"... e o apresentador ainda tentou intervir mas...
Daí pra frente Matilde começou a fazer um chá de flores de macieira e já não ouvia mais nada o que o marido falava. Só concordava com discretos murmúrios e arqueares de sobrancelha. Ela só pensava em acabar logo com aquela conversa enfadonha e tentar dormir um pouco. Mas ele estava disposto a desabafar.
O casamento não ia nada bem. Ela achava que ele jamais tinha que ter largado a repartição onde trabalhava para tentar a sorte como animador de auditório. A vida de escriturário, se não lhe proporcionava regojizo intelectual, ao menos lhe possibilitavam algum conforto material. Ele, por sua vez, achava que ela se interessava mais por besouros do que por ele. Às vezes, sentia-se um inseto perto dela. Ou melhor, sentia-se um animador de auditório mesmo, porque se fosse um inseto, ainda teria alguma chance com ela. O fato é que não estavam na melhor das fases. Talvez tudo se resolveria depois desse encontro com os russos, evento que estava tornando Matilde uma pessoa pior.
- Podemos dormir agora? Você sabe... os russos...
- Sei, sei... os malditos russos... vamos, vamos dormir...
A cantilena do marido havia durado mais do que o esperado - mais do que o humanamente suportável, pensou Matilde - de modo que já passava da meia-noite quando deitou novamente na cama, desta vez ao lado do marido que pulara a parte do banho, desanimando assim o auditório de Matilde.
Agora eram menos de seis horas o tempo que Matilde tinha para descansar e estar fisicamente apta para o grande dia do ano. Agora, o cheiro de amêndoas começara a ficar enjoativo, sobretudo misturado com o cheiro de suor seco que o corpo do marido exalava. As molas ensacadas revelavam-se, por fim, propaganda enganosa, já que cada virar de lado do marido a lançava mais para a beirada da cama. Que noite!
O ambiente nauseabundo a incomodava. Abriu a janela para que o ar puro fizesse alguma frente ao ar corrompido pelo fedor do marido. O ar puro entrou, é verdade, mas trouxe com ele os pernilongos. Eram muitos e vorazes. Matilde estapeava-se na tentativa de acertar algum, mas o máximo que conseguia era provocar vergões em sua pele alva. Levantou-se. O marido não acordava por nada.
Alcançou a raquete elétrica e pôs-se a provocar curto-circuitos noite adentro. Já não tinha mais seu costumeiro amor pelos animais. Queria vê-los mortos! Queria poder dormir para não ficar feito sonâmbula diante dos russos, daqueles malditos russos! Fechou a maldita janela. Preferia morrer sufocada com o fedor que vinha do corpo do marido e daquela amêndoa podre do que ser devorada viva por aqueles insetos! Quem sabe agora dormiria as três horas e dezessete que lhe restavam antes do maldito despertador começar a cantar...
Virava-se, virava-se e virava-se quando chegou a conclusão de que não iria dormir mais, que passaria a noite em claro e que, quando desse a hora falaria com os russos. Entupiria-se de café e cobriria o rosto com camadas e mais camadas de maquiagem para esconder as olheiras e os hematomas causados por aqueles terríveis animais.
Foi quando ouviu a Lady Gaga. Estava pensando nos russos e, quando menos esperava, ouviu os primeiros acordes de "Poker Face". Tempo esgotado. Era o despertador. Levantou-se da cama com cuidado para não despertar o marido. Já nem sentia mais o odor da amêndoa azeda, já devia ter se amalgamado a seus sensores olfativos. Tomou um banho rápido e se emplastou de maquiagem de uma marca concorrente à da essência maldita. Olhou-se no espelho e até que gostou do que viu. "Não tem tu, vai tu mesmo" - pensou. Saiu para o quintal e subiu no patinete - há tempos que largara a bicicleta e passou a ir trabalhar de patinete - partindo em direção ao trabalho!
O trânsito estava bom. Desde que a prefeitura introduziu as faixas exclusivas para patinetes, sua vida melhorara bastante, ainda que essa medida de cunho altamente populista tivesse deixado os usuários de bicicleta profundamente irritados. Em dezenove minutos chegou na universidade. Estacionou seu patinete no patinetário e rumou em direção ao laboratório.
Encontrou-o vazio. Ainda eram sete e três, de modo que ainda tinha vinte e sete minutos para rever o material antes da chegada da intérprete e cinquenta e sete antes da chegada dos russos. Mal colocara o computador sobre a mesa, no entanto, a intérprete assomou à porta... vestida de odalisca.
- O que significa isso? - perguntou Matilde, completamente atônita.
- Ah, desculpe-me. É que o trânsito estava melhor do que eu previa, por isso cheguei mais cedo que o combinado mas, se quiser, aguardo lá fora...
- Me refiro a sua fantasia! Por acaso é carnaval?
- Não entendo... você veio fantasiada de bióloga e eu vim fantasiada de odalisca. É como me sinto bem - disse isso e começou uma performance ali mesmo, convidando Matilde pra dançar também...
Matilde desvincilhou-se da odalisca e saiu pela porta atrás dela. Foi atrás de um segurança. O posto onde o segurança costumava ficar estava vazio.
- Olá, amiguinha! Só tinha dado uma escapadinha para ir ao banheiro, mas aqui estou eu!
Matilde virou-se. Era o segurança. Só que vestido de palhaço.
- Aaaaaahhhhhh - gritou Matilde, deixando escapar toda sua estranheza.
- Calma, amiguinha - disse o palhaço, enquanto tirava uma moeda da orelha de Matilde.
- O que está havendo? Você não era o segurança deste posto?
- E ainda sou! E tenho até uma arma! - disse o palhaço, sacando uma pistola do bolso, apertando o gatilho e deixando Matilde completamente ensopada.
- Ah, minha maquiagem, você estragou minha maquiagem!
- A-há! Você também está maquiada! Quem é o palhaço por aqui? Hahahahaha - ria o palhaço, enquanto enfiava uma bola pelo nariz.
Matilde já estava em prantos. Nunca passara por situação semelhante. Tudo estava dando errado e os russos ainda nem haviam chegado. Resolveu voltar para o laboratório e esperar os russos por lá. A odalisca continuava dançando e assim continuou, parecendo nem perceber a presença de Matilde.
De repente, aparece na porta um caubói - era o secretário, já não estranhava mais nada - dizendo que os russos já tinham chegado e que estavam a caminho do laboratório. Matilde respirou fundo e tentou se recompor como pôde. Até que um barulho vindo do corredor deixou Matilde em estado de alerta. Seriam os russos? Saiu para o corredor para recebê-los mas, para seu total desespero, não eram figuras humanas que vinham ao seu encontro, mas aranhas monstruosamente grandes! Matilde entrou em estado de pânico e começou a correr em direção contrária. A odalisca gargalhava diabolicamente enquanto dançava de maneira frenética. Matilde corria e quando estava chegando no final do corredor, percebeu que estava cercada. Um enxame de borboletas inacabadas vinham em sua direção. Um cheiro insuportável de amêndoas tomou conta do ambiente, até que Matilde ouviu a Lady Gaga.
Um pesadelo. Matilde, afinal, havia dormido e sonhado com tudo aquilo e agora estava atrasadíssima. Que vergonha! Os russos já deviam estar esperando por ela há um tempão. Não terminava o livro sobre as borboletas e agora passaria vergonha na apresentação sobre as aranhas. Que vergonha!
Nem banho Matilde tomou. Deixou o marido dormindo, trocou de roupa, subiu no patinete e partiu para o trabalho. Antes tarde do que mais tarde - aprendera com o marido, que ao menos para lhe ensinar frases de efeito, prestava. Estava mais de uma hora atrasada para a reunião quando estacionou o patinete no patinetário. Entrou no edifício e foi direto para o laboratório. Com olhares entediados, todos os russos estavam lá.
Completamente nus.
***
Enquanto afofava o travesseiro e o ajeitava de modo a lhe proporcionar o maior deleite possível, ia planejando, mentalmente, o dia seguinte, aquele em que receberia a comissão estrangeira para apresentar os últimos resultados da pesquisa que ela liderava. Iria sair meia hora mais cedo do que o habitual para não correr risco de chegar atrasada. Dispensaria o café da manhã com os colegas da universidade para dar mais uma repassada no material que iria apresentar para os russos - sim, eram russos... pensando bem - pensou bem, Matilde - era melhor ligar para a intérprete russa para confirmar se estava tudo certo para a manhã seguinte. Ainda eram pouco mais do que dez e era melhor ligar agora do que correr o risco de pegar a intérprete em pleno sono.
Levantou-se. Ligou para a intérprete que a atendeu com nítido mal humor na voz. Detestava ser interrompida de seus exercícios de calistenia. Sim, estava tudo certo para amanhã. Estaria na universidade às sete e meia, portanto, meia hora antes da reunião com os russos. Sim, ela sabia falar russo. Sim, ela sabia o endereço da universidade, já que tinha sido lá mesmo onde aprendera russo, no Departamento de Letras Orientais, nos anos 90. Não, ela não precisava ficar preocupada. Depois de um "desculpe-me o incômodo" de um lado e de um completamente falso "não foi incômodo algum" de outro, a ligação foi encerrada. Uma poderia voltar para os exercícios de calistenia e a outra - a que aqui nos interessa, quem tiver disposição que escreva a versão da intérprete - voltou para a cama, já que ainda teria 7 horas e 54 minutos para se refestelar em seu colchão King Size com molas ensacadas. Deitou-se.
Já não precisava preocupar-se em não ser compreendida pelos russos. Agora, podia dormir em paz. Mas, com tantas horas de sono pela frente, o mais prudente era garantir que suas necessidades fisiológicas fossem atendidas de antemão. Urinaria o que já estivesse a disposição em seu sistema excretor e encheria um cantil de água para que ficasse ao alcance da mão para o caso de acordar sedenta pela madrugada. Levantou-se.
Serviu-se do banheiro como de costume e partiu para a cozinha para encher o cantil. No caminho escutou a maçaneta da porta mover-se. Era o marido que chegava da emissora, ou seja, não conseguiria passar ilesa a uma boa meia hora de conversa. Se tivesse ficado na cama, esse inconveniente não seria necessário, já que teria fingido que estava dormindo e teria ganho um tempo precioso de sono. Entretanto, as necessidades fisiológicas se impuseram e lá estava ela, no meio da cozinha, conversando com o marido sobre seu dia.
- Terminou o livro?
- Não... quero dormir cedo. Deixarei as borboletas pra outro dia. Os russos vem amanhã...
- Que russos?
- Ora, os russos para quem eu apresentarei a pesquisa sobre os aracnídeos...
- Arac... o quê?
- Aracnídeos... bom, deixa pra lá. Não estou com cabeça pra isso agora. E você? Como foi hoje?
- Uma merda...
- Nossa, que boquinha, hein?
- Só teve pereba no concurso de calouros hoje... tive que pular feito macaco pra arrancar meia dúzia de aplausos daquele monte de gente desocupada... riram mesmo foi de mim quando a Maria Eduarda, aquela pentelha do Show Infantil, arrancou minha peruca e saiu correndo com ela na mão "hahaha... o tio é careca... o tio é careca.... tio cabeça de kinder ovo... hahaha"... e o apresentador ainda tentou intervir mas...
O casamento não ia nada bem. Ela achava que ele jamais tinha que ter largado a repartição onde trabalhava para tentar a sorte como animador de auditório. A vida de escriturário, se não lhe proporcionava regojizo intelectual, ao menos lhe possibilitavam algum conforto material. Ele, por sua vez, achava que ela se interessava mais por besouros do que por ele. Às vezes, sentia-se um inseto perto dela. Ou melhor, sentia-se um animador de auditório mesmo, porque se fosse um inseto, ainda teria alguma chance com ela. O fato é que não estavam na melhor das fases. Talvez tudo se resolveria depois desse encontro com os russos, evento que estava tornando Matilde uma pessoa pior.
- Podemos dormir agora? Você sabe... os russos...
- Sei, sei... os malditos russos... vamos, vamos dormir...
A cantilena do marido havia durado mais do que o esperado - mais do que o humanamente suportável, pensou Matilde - de modo que já passava da meia-noite quando deitou novamente na cama, desta vez ao lado do marido que pulara a parte do banho, desanimando assim o auditório de Matilde.
Agora eram menos de seis horas o tempo que Matilde tinha para descansar e estar fisicamente apta para o grande dia do ano. Agora, o cheiro de amêndoas começara a ficar enjoativo, sobretudo misturado com o cheiro de suor seco que o corpo do marido exalava. As molas ensacadas revelavam-se, por fim, propaganda enganosa, já que cada virar de lado do marido a lançava mais para a beirada da cama. Que noite!
O ambiente nauseabundo a incomodava. Abriu a janela para que o ar puro fizesse alguma frente ao ar corrompido pelo fedor do marido. O ar puro entrou, é verdade, mas trouxe com ele os pernilongos. Eram muitos e vorazes. Matilde estapeava-se na tentativa de acertar algum, mas o máximo que conseguia era provocar vergões em sua pele alva. Levantou-se. O marido não acordava por nada.
Alcançou a raquete elétrica e pôs-se a provocar curto-circuitos noite adentro. Já não tinha mais seu costumeiro amor pelos animais. Queria vê-los mortos! Queria poder dormir para não ficar feito sonâmbula diante dos russos, daqueles malditos russos! Fechou a maldita janela. Preferia morrer sufocada com o fedor que vinha do corpo do marido e daquela amêndoa podre do que ser devorada viva por aqueles insetos! Quem sabe agora dormiria as três horas e dezessete que lhe restavam antes do maldito despertador começar a cantar...
Virava-se, virava-se e virava-se quando chegou a conclusão de que não iria dormir mais, que passaria a noite em claro e que, quando desse a hora falaria com os russos. Entupiria-se de café e cobriria o rosto com camadas e mais camadas de maquiagem para esconder as olheiras e os hematomas causados por aqueles terríveis animais.
Foi quando ouviu a Lady Gaga. Estava pensando nos russos e, quando menos esperava, ouviu os primeiros acordes de "Poker Face". Tempo esgotado. Era o despertador. Levantou-se da cama com cuidado para não despertar o marido. Já nem sentia mais o odor da amêndoa azeda, já devia ter se amalgamado a seus sensores olfativos. Tomou um banho rápido e se emplastou de maquiagem de uma marca concorrente à da essência maldita. Olhou-se no espelho e até que gostou do que viu. "Não tem tu, vai tu mesmo" - pensou. Saiu para o quintal e subiu no patinete - há tempos que largara a bicicleta e passou a ir trabalhar de patinete - partindo em direção ao trabalho!
O trânsito estava bom. Desde que a prefeitura introduziu as faixas exclusivas para patinetes, sua vida melhorara bastante, ainda que essa medida de cunho altamente populista tivesse deixado os usuários de bicicleta profundamente irritados. Em dezenove minutos chegou na universidade. Estacionou seu patinete no patinetário e rumou em direção ao laboratório.
Encontrou-o vazio. Ainda eram sete e três, de modo que ainda tinha vinte e sete minutos para rever o material antes da chegada da intérprete e cinquenta e sete antes da chegada dos russos. Mal colocara o computador sobre a mesa, no entanto, a intérprete assomou à porta... vestida de odalisca.
- O que significa isso? - perguntou Matilde, completamente atônita.
- Ah, desculpe-me. É que o trânsito estava melhor do que eu previa, por isso cheguei mais cedo que o combinado mas, se quiser, aguardo lá fora...
- Me refiro a sua fantasia! Por acaso é carnaval?
- Não entendo... você veio fantasiada de bióloga e eu vim fantasiada de odalisca. É como me sinto bem - disse isso e começou uma performance ali mesmo, convidando Matilde pra dançar também...
Matilde desvincilhou-se da odalisca e saiu pela porta atrás dela. Foi atrás de um segurança. O posto onde o segurança costumava ficar estava vazio.
- Olá, amiguinha! Só tinha dado uma escapadinha para ir ao banheiro, mas aqui estou eu!
Matilde virou-se. Era o segurança. Só que vestido de palhaço.
- Aaaaaahhhhhh - gritou Matilde, deixando escapar toda sua estranheza.
- Calma, amiguinha - disse o palhaço, enquanto tirava uma moeda da orelha de Matilde.
- O que está havendo? Você não era o segurança deste posto?
- E ainda sou! E tenho até uma arma! - disse o palhaço, sacando uma pistola do bolso, apertando o gatilho e deixando Matilde completamente ensopada.
- Ah, minha maquiagem, você estragou minha maquiagem!
- A-há! Você também está maquiada! Quem é o palhaço por aqui? Hahahahaha - ria o palhaço, enquanto enfiava uma bola pelo nariz.
Matilde já estava em prantos. Nunca passara por situação semelhante. Tudo estava dando errado e os russos ainda nem haviam chegado. Resolveu voltar para o laboratório e esperar os russos por lá. A odalisca continuava dançando e assim continuou, parecendo nem perceber a presença de Matilde.
De repente, aparece na porta um caubói - era o secretário, já não estranhava mais nada - dizendo que os russos já tinham chegado e que estavam a caminho do laboratório. Matilde respirou fundo e tentou se recompor como pôde. Até que um barulho vindo do corredor deixou Matilde em estado de alerta. Seriam os russos? Saiu para o corredor para recebê-los mas, para seu total desespero, não eram figuras humanas que vinham ao seu encontro, mas aranhas monstruosamente grandes! Matilde entrou em estado de pânico e começou a correr em direção contrária. A odalisca gargalhava diabolicamente enquanto dançava de maneira frenética. Matilde corria e quando estava chegando no final do corredor, percebeu que estava cercada. Um enxame de borboletas inacabadas vinham em sua direção. Um cheiro insuportável de amêndoas tomou conta do ambiente, até que Matilde ouviu a Lady Gaga.
Um pesadelo. Matilde, afinal, havia dormido e sonhado com tudo aquilo e agora estava atrasadíssima. Que vergonha! Os russos já deviam estar esperando por ela há um tempão. Não terminava o livro sobre as borboletas e agora passaria vergonha na apresentação sobre as aranhas. Que vergonha!
Nem banho Matilde tomou. Deixou o marido dormindo, trocou de roupa, subiu no patinete e partiu para o trabalho. Antes tarde do que mais tarde - aprendera com o marido, que ao menos para lhe ensinar frases de efeito, prestava. Estava mais de uma hora atrasada para a reunião quando estacionou o patinete no patinetário. Entrou no edifício e foi direto para o laboratório. Com olhares entediados, todos os russos estavam lá.
Completamente nus.
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Eita! Que coisa mais esquisita!
ResponderExcluirDigo...
Lários, mais uma vez me emociono com um post seu. Sua capacidade de provocar as mais sublimes emoções com uma prosa imagética é um verdadeiro dom. Aproveite esta dádiva porque isso é para poucos. Estou digitando essas palavras com os pés, porque com as mãos estou te aplaudindo! Vida longa ao seu talento!
Mas, a transição do tédio para o lúdico foi realmente surpreendente!
Híndira, é sempre muito bom ler seus comentários! Você comenta muito bem!
ExcluirSua capacidade de provocar as mais sublimes emoções com uma prosa imagética é um verdadeiro dom. Aproveite esta dádiva porque isso é para poucos. Estou digitando essas palavras com os pés, porque com as mãos estou te aplaudindo! Vida longa ao seu talento!
Abração!
Amanhã mesmo venho trabalhar vestido de odalisca! Digo, de palhaço. Me identifiquei na parte da determinação de dormir cedo, mas de repente tem que ir pegar água, ir ao banheiro, passar inseticida.... só faltou entrar no Facebook, daí que a noite de sono já era mesmo!
ResponderExcluirEu venho trabalhar disfarçado de funcionário público todos os dias. O Felipe fica em casa dormindo :)
ExcluirQue maluquice!
ResponderExcluirMas ficou um pergunta no ar.... se Matilde falava russo, porque precisava de uma intérprete?
O resto faz todo sentido.
Olá, Carola! A Matilde não sabia russo... que se formou no Departamento de Letras Orientais, foi a intérprete e não Matilde.
ExcluirEsse é o tipo de texto que a gente escreve depois que lê "A lua vem da Ásia"...
Bjão!
Era a Eunice Ostrensky, né? (é a única mulher que eu conheço que fala russo)
ExcluirEssa você desenterrou, hein!
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