Uma das coisas mais legais dessa história de ser pai é poder revisitar a infância. E quando falo em revisitar quero dizer participar do universo infantil só que, desta vez, pela perspectiva do adulto. A literatura infantil tem sido uma dessas revisitas, quiçá a mais interessante. Quando leio um livro pra minha filha (ela tem 2 anos), na verdade, estou lendo pra mim também. É incrível como tem coisas que ela percebe e que às vezes passa batido pra mim. E é igualmente incrível como agora eu percebo coisas e "piro" em detalhes que, quando era criança, simplesmente não me diziam nada. É triste pensar que se os livros para crianças forem lido só por crianças, todo esse tesouro de pirações será negligenciado. Pensando nisso, fiz uma seleção de alguns livros de minha filha que proporcionaram "pequenos momentos de iluminação", como diria a senhora minha esposa. Não são necessariamente os melhores, não são necessariamente os que ela mais gosta e tampouco são necessariamente os que eu mais gosto, mas são aqueles que proporcionaram tais momentos. Comecemos por Chapeuzinho Amarelo!
Chapeuzinho Amarelo
Chapeuzinho Amarelo
São poucas as histórias que ganharam mais versões do que o clássico conto de "Chapeuzinho Vermelho", a menina de capuz vermelho que foi incumbida de levar doces para a sua idosa avó. Vinda da tradição oral, a história demorou para ganhar uma versão escrita. A primeira compilação (séc. XVII) é catastrófica e pertence ao francês Charles Perrault. Nessa versão não há final feliz: a menina e avó são devoradas por um lobo faminto e ponto final. A segunda compilação (do séc. XIX, acredito que a mais conhecida) é bem mais atenuada e é de autoria dos irmãos alemães Jacob e Wilhelm Grimm. Aqui aparece a figura do caçador, macho alfa que retira avó e neta vivas da barriga do lobo (ahãn... claro, claro) e levam o pobre animal à morte ao colocar pedras dentro de sua barriga. Mais recentemente, surgiram versões mais ousadas, como a de Orlando de Miranda (intitulada "Chapéu Vermelho II - as bocas do lobo), em que Chapeuzinho, após seu fatídico episódio com o lobo, mudou-se para a cidade grande (São Paulo) e precisa levar medicamentos psicotrópicos para sua avó (que numa dessas também tinha mudado para a paulicéia desvairada), tendo que, para isso, atravessar o Largo do Arouche a noite, com muito cuidado para evitar cair nas armadilhas do "lobo" (aqui representado pela violência urbana).
Em meio a todas essas versões acredito que existe sempre a ideia moralizante do "bom caminho". A menina de traje claramente comunista só se complica, faz crer a maioria das versões, porque se desviou do caminho sugerido pela mãe, enfim, porque "não andou na linha", o que nos remete à tão recorrente prática da culpabilização da vítima, que foi estuprada porque andava com roupa curta demais, que foi assaltado porque andou por um caminho sinistro demais e por ai vai. Perpassando todo este moralismo está a chamada "cultura do medo", o medo que cada um tem dos "lobos" de nosso cotidiano.
A dupla de gênios Chico Buarque e Ziraldo conseguem resgatar essa essência no clássico "Chapeuzinho Amarelo", a menina que tinha medo de tudo, que era amarelada de tanto medo e que deixava de fazer tudo nessa vida por conta do medo (o que nós deixamos de fazer por conta do medo, hein?). E, entre tantos medos, não podia faltar o medo do lobo, que era seu "medo mais que medonho". E mesmo com tanto medo do lobo (ou seria medo do medo de encontrar o lobo?) um dia Chapeuzinho acabou se encontrando com ele, assim como nós que, sem hora marcada, acabamos por topar com nosso medos por aí.
A grande sacada do livro é mostrar que o medo de uma coisa geralmente é muito mais aterrorizante do que a coisa em si. Ao se deparar com o lobo, Chapeuzinho acaba por achá-lo inofensivo, sobretudo ao compará-lo com o medo que tinha dele. O "lobo" virou tão inofensivo quanto um "bolo". Transformação semântica feita por Chico. Transformação gráfica magistralmente feita por Ziraldo, na ilustração mais incrível do livro (reparem que o vazio deixado entre um lobo e outro vai formando, paulatinamente, a figura de um bolo. Algo parecido acontece quando se repete muitas vezes a palavra "lobo", que com o tempo vai se confundindo com a palavra "bolo").
O casamento perfeito entre texto e ilustração (Ziraldo inspiradíssimo) fazem deste livro um clássico, uma das versões mais interessantes que já li da tão revisitada Chapeuzinho Vermelho. E é por isso que o tirei por alguns minutos da estante da minha filha para mostrá-lo a vocês.
Ah, coloquei abaixo um áudio-livro com a história na íntegra!
A grande sacada do livro é mostrar que o medo de uma coisa geralmente é muito mais aterrorizante do que a coisa em si. Ao se deparar com o lobo, Chapeuzinho acaba por achá-lo inofensivo, sobretudo ao compará-lo com o medo que tinha dele. O "lobo" virou tão inofensivo quanto um "bolo". Transformação semântica feita por Chico. Transformação gráfica magistralmente feita por Ziraldo, na ilustração mais incrível do livro (reparem que o vazio deixado entre um lobo e outro vai formando, paulatinamente, a figura de um bolo. Algo parecido acontece quando se repete muitas vezes a palavra "lobo", que com o tempo vai se confundindo com a palavra "bolo").
O casamento perfeito entre texto e ilustração (Ziraldo inspiradíssimo) fazem deste livro um clássico, uma das versões mais interessantes que já li da tão revisitada Chapeuzinho Vermelho. E é por isso que o tirei por alguns minutos da estante da minha filha para mostrá-lo a vocês.
Ah, coloquei abaixo um áudio-livro com a história na íntegra!
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Autor: Chico Buarque
Ilustrador: Ziraldo
Ano da primeira edição: 1970 (a primeira edição ilustrada por Ziraldo é de 1979)
Editora: José Olympio Editora
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