Às vezes quando olho uma foto minha criança, vejo como se aquela não fosse eu mas soubesse de tudo o que ela sente. Fito o olhar e consigo recordar as angústias que me rodeavam naquela época. Tenho vontade de pegar aquela criança no colo e fazê-la acalmar, como um Eu do futuro, alertando que tudo passa. Lembrar da minha infância é lembrar dos mais variados tipos de medo, a começar o medo de nascer. Era nítido: eu não queria estar aqui. Entre sentar na barriga de minha mãe como protesto, "não me tirem daqui", e o mar de lágrimas que se formou após não acatarem meu apelo (confundido por muitos familiares como manha, frescura e entre outras coisas), penso que minha vida sempre foi adaptação. Adaptar-me aquilo que não me pertence. Quando se é criança, é praticamente nula a possibilidade de ser você mesma, sendo suas escolhas coordenadas por aqueles que receberam a missão de te proteger. Afinal, proteger do que? Do perigo? Da morte? Do sofrimento? Do arrependimento? Talvez. Mas hoje defendo a ideia de que somos protegidos de nós mesmos, de tudo o que somos, de todo o potencial que carregamos, sombrio ou iluminado.
Pequenos reflexos de autenticidade são até hoje recordados pelos meus pais e pessoas próximas. Mesmo coisas simples como: subir as escadas até o telhado de casa e chamar meu pai de "nariz vermelhinho); me impressionar sempre que via pessoas vermelhas e soltar sem pudor "pelamordedeus pai, que homem mais vermelho"; vestir a farda do meu pai quando ele a tirava para almoçar; assistir desenho e ficar alisando com a mão a franja na testa deitada com as pernas sobre o encosto do sofá; ser apaixonada pelo Maurício Matar na novela A Viagem; ver uma estrela cadente e pedir sempre uma bicicleta; só ir no colo de determinadas pessoas; ter como refeição única café com leite; brincar e falar com "seres" que somente eu via; dar uma volta de bicicleta no bairro e voltar com um coelho numa caixa de sapato; rezar um livrinho de orações que minha avó fia me deu durante a semana para que fizesse sol no final de semana e meus pais me levassem ao clube; colorir; ter um lugar predileto no sofá; uma caneca preferida; uma mania qualquer que de forma ritualística me fazia mais feliz; o desejo e ambição por aprender variadas coisas ao mesmo tempo e correr atrás delas sem condição física e mental para estabelecer um compromisso verdadeiro. Essas pequenas coisas, por mais pequenas que sejam, eram minhas, as trouxe de longe, de outras experiências em que pude ser eu.
Cresce-se e quem você é torna-se moldável, ou melhor, nasce-se e quem você é torna-se nulo. Ensinam-lhe que se torne aquilo que aprenderam que deveríamos nos tornar: qualquer coisa que não seja você mesmo, por isso mesmo torna-se "coisa". Penso que derramei uma, ou várias, lágrima pra cada eu que tive que esconder. Alguns enxergaram isso como rebeldia, uns como comportamento típico de uma criança caçula mimada, outros nem enxergaram. Sei que talvez ninguém tenha olhado isso como um luto. Deixar de ser quem realmente é, é como ir se matando aos poucos. E há ainda aqueles que defendam que isso era tudo para me proteger. Retorno: do que? De quem eu sou e de quem eu gostaria de me tornar. Fazemos isso com as crianças de uma forma geral, pedindo-lhes que guardem seus pequenos pontos de si mesmo e arquivem-os num cofre blindado permitindo-lhes que os abram novamente apenas na vida adulta, quando provavelmente já não teremos a menor consciência de quem somos. Ainda há aqueles que não acreditam em um trabalho psicoterápico que se remete tanto a fase da infância, talvez seja porque realmente não é fácil admitir que foi lá que nos foi ensinado a nos matar e hoje, as vezes de forma inconsciente, carregamos a frustração de ter que nos velar e enterrar por tantas vezes que obrigamos as nossas crianças a fazer o mesmo.
Quero falar do modo como aprendi a vivenciar tudo isso, infelizmente o medo foi meu maior companheiro por boa parte da vida, chegando a extremos como ter medo de tomar banho sozinha ou simplesmente de dormir. Fechar os olhos era como morrer de vez. Dormir é se entregar ao inconsciente e isso para mim era tornar minha consciência dominável por quem quer que fosse. E se me roubassem de mim? Não viveria o sonho de liberdade que carregava no peito. E para onde eu iria? Para um universo paralelo de robôs humanos que nada fazem a não ser a obedecer. Obedecer. Sempre tive dificuldade de obedecer. Creio que eu apenas acatava, por cansaço de brigar por ao menos a possibilidade de expor meus motivos, ou mesmo pela impotência que nos é imposta devido à idade. Ser quem somos é difícil. Temos que deixar de nos matar, lutar pela nossa sobrevivência e, mesmo sem querer, desinflar os egos que já se perderam de qualquer ponto ordenador que possa lhes tornar eles mesmos. Enfrentamento de egos. Não existe enfrentamento de essência. Quem é não se afeta com o quem é do outro, mas quem supomos ser sim, esse é guerrilheiro, e dos bons, apedreja toda e qualquer manifestação de si mesmo que veja andando sobre a Terra. A sua missão é essa: vingar a morte do si mesmo. Nada mais triste do que verificar que não se tornou aquele que poderia ter sido por ter que se submeter a uma educação que te pune por ser quem é. Meu Deus, que tragedia, fazemos isso uns aos outros a cada instante. Até mesmo com um olhar, ferroamos a essência do outro como modo de fazer-lhe parar de ser quem é, como mecanismo de retratação por termos já nos esquecido de nós.
Sugaram-nos todo o potencial de vida que tínhamos e ainda assim nos obrigam a correr atrás de uma felicidade plena. Quem é feliz não sendo quem se é? Isso é impossível! Somos doentes. Dependentes emocionais da tristeza alheia que nos faz menos desgraçados. Somos reivindicadores de lutas que não deveriam ser nossas. Somos condicionados à procurar um bem estar que não nos pertence. Não tem como ser feliz se não está vivo, e se fomos obrigados a nos matar ao longo da vida, o que nos restou? Caminhar como seres rastejantes por caminhos e direções que nos apontam como um norte que nos levará sem saber essencialmente para onde e para que. Parem o que estão fazendo agora e recordem qual foi a última vez que um passo seu foi dado sem orientações de como proceder durante o voo. Reflitam que quando não sabemos para onde ir, haverá sempre alguém interessado em oferecer o trajeto alheio. Como forma de se aliviar por saber que não se fudeu sozinho. Vagantes que somos, obedecemos, afinal, quando nada se tem, o pouco vira muito e qualquer coisa será sempre melhor que nada. Quando escolheremos o caminho de volta? Aquele que nos levará de encontro a quem somos. Quem será o semeador da discórdia que causará uma revolução em nossas vidas e nos obrigará a ficar de joelhos, tendo por entre as mãos o rosto molhado pelas lágrimas de todo o eu que se foi, sujos por toda a poluição dos destroços deixados pelo desmoronamento da nossa essência, gritando em uníssono: CHEGA!
Reconhecer quando a peça acaba costuma ser instintivo. As cortinas fecham e alguém se levanta a bater as palmas. Apenas copiamos, vez ou outra puxamos um "bravo", mas sempre porque já o vimos alguém a fazer. O grito inédito, o passo inovador, a unicidade é da alma e nós já não a temos mais. Somos flagelos de maltratos politicamente corretos. Acreditem, existem livros, cursos, palestras, músicas, escolas, etc, a nos ensinar "Como não ser você mesmo", "10 passos para não permitir-se sem quem é", "Impedindo nossos filhos de serem melhores que nós", "Educando para o fracasso", "Proibindo o parceiro de ser feliz", "Aprendendo a ser infeliz", entre tantas outras formas de nos fazer corroer pelos bueiros que aprendemos a nos permitir percorrer. Somos assim. Adaptáveis. Nos adaptamos até mesmo aquilo que nos faz mal e quando uma fresta se abre a permitir que um caminho mais seu surja, o que fazemos? Fugimos. Isso mesmo. Vamos correndo pedir arrego, pois ser feliz é algo que não sabemos ser não. Diz a lenda que executivos largaram tudo pra ir viver na praia "vendendo coisas que a natureza dá pra gente", mas isso não é pra mim. Deixar pra trás uma vida medíocre de subordinação das 8 às 18 com uma hora de descanso e final de semana com direito a selfie que registra a felicidade de termos um balde de vodka com energético pra nos fazer esquecer a porcaria de vida insana que levamos é mesmo um ato de extrema burrice. Claro. Afinal, o que os outros vão pensar de mim? O que vou dizer para os meus pais? Que exemplo darei aos meus filhos? O que a vizinha vai inventar a meu respeito? Procure um médico, pois estes são sintomas da síndrome do parecer, ela sempre surge quando passamos a ter uma existência vivida pelo olhar do outro. O que o outro quer de mim tem mais valor, até mesmo porque eu não tenho a menor ideia do que quero, de quem eu sou e de onde quero chegar. Já que é assim, que o outro então direcione minha vida, seguir o fluxo é o melhor caminho quando não se sabe onde ir. Tá aí. Fadados a moda do fluxo. Que cansaço. Chega a deixar o corpo e mente exaustos como um pedreiro que carregou lata de concreto nas costas por 10 horas seguidas.
Somos assim. Não satisfeitos de nos desgraçar sozinhos, levamos sempre alguém junto, às vezes até pagamos pra que nos acompanhem, o que importa é fingir que a solidão não nos amedronta. Tornamos escravos da fuga por não nos sentir sozinhos. Um segundo com nós mesmos é o suficiente para um ataque de pânico que será resolvido com doses diárias de psicotrópicos que deveriam ser parte da cura da nossa essência ferida junto a 50 minutos semanais de análise com um psicólogo que é conhecido por ser médico de louco e que embora não seja médico tem sim a função de te ajudar a enxergar a loucura que você está fazendo com a sua vida. Mas não, isso não é pra mim. É que sou uma pessoa extrovertida. Gosto de conhecer gente, lugares e estar sempre rodeados de pessoas tão vazias quanto eu, afinal, todos nós seguimos o mesmo fluxo e se o fluxo diz que "é o que temos pra hoje" então vamos viver a vida conforme o manual que nos foi dado no primeiro pedágio que passamos, onde trocamos nossa dor por um smartphone, uma rede social com grandes promessas de likes, um uniforme (devendo este ser renovado conforme o fluxo), companhias que estarão na mesma vibe que nos e o rótulo a ser discutido nas aulas de história e literatura do próximo século sobre a geração que teve como protesto não sentir nada. Será que até o nada nos foi imposto como forma de rebeldia? Pode ser.
O diretor do reality show no qual estamos participando para concorrer o título de "a vida mais sem vida do mundo", onde competimos semanalmente pela posição de "puxador de fluxo" quando nos é dado o poder de direcionar para qual abismo levaremos a manada, muito orgulhoso deve estar de seu elenco, pois nunca antes na história houve tantos personagens que de tão apegados à suas máscaras se desfizeram de suas identidades originais. Não é fácil encontrar funcionários dedicados como tal. Eximem-se de suas próprias vidas para existir na realidade do outro, vão com mala e cuia, dificilmente voltam, poucos lembram que existia vida antes disso.
PS: Entrei para o blog essa semana e o texto saiu sem tempo para revisões. Espero que os erros não te espantem para os próximos.
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