segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Quem disse que brasileiro é gente?


Em 2006 estava em um grupo de teatro que fazia uma pesquisa sobre moradores de rua. A peça era apresentada no centro de São Paulo e sempre estávamos ali, ensaiando e conversando com todos os moradores que encontrávamos.

A maioria das histórias se parecia, pessoas que perdiam empregos, casas, famílias, fosse pela bebida, pelo dinheiro, e acabavam morando na ruas. Alguns queriam voltar as suas cidades, mas tinham vergonha, então preferiam ficar, outros estavam mal mentalmente, corroídos pela bebida e pela droga. Mas todas as histórias eram comoventes, nunca conheci ninguém que quisesse continuar na rua, todos diziam a mesma coisa, se tivessem uma oportunidade de sair não estariam ali.

E lembro de uma moradora que ficava em frente ao lugar onde nos apresentávamos, ela sempre estava por ali, uma moça meiga, que tinha se envolvido com um namorado traficante e acabou morando na rua. Nós nos apresentávamos em uma casa destruída, cuidada por uma ONG, que trabalhava com os moradores de rua, esse lugar tinha um anexo com banheiro e cozinha e era frequente que os moradores de rua entrassem ali, assim nossa convivência era maior.

Um dia essa moça entrou procurando alguma coisa, eu tinha chegado cedo, fui a um canto fazer minha maquiagem e ela se sentou do meu lado, começou a me fazer perguntas sobre maquiagem, queria saber para que funcionava cada produto. Acabamos chegando na conversa sobre sua vida, porque não voltava para sua casa, mas ela me disse que sua mãe tinha morrido e seu pai não queria ela por lá. Comentou que não era tão ruim morar na rua, a única coisa que a fazia sentir mal era o ''banheiro''. Eu não entendi e ela me explicou que não se importava em dormir na rua, acordar e procurar comida no lixo, mas na hora que tinha que fazer suas necessidades se sentia como um animal, procurando um lugar escondido e se comportando como se fosse bicho. Me olhou fixamente e disse:

-É a coisa mais humilhante do mundo.


Fiquei chocada, nunca tinha pensado nisso.

Contei essa história para o grupo e saíram outras parecidas, inclusive de uma moça que usava pedaços de jornal no lugar dos absorventes.

Tudo isso era apenas causado pela falta de banheiros públicos. Uma coisa simples e comum em países civilizados, mas não aqui.

E tenho sentido muita revolta nos últimos dias porque venho assistindo a quantidade enorme de estrangeiros que chegou ao país para acompanhar as Olimpíadas, sem um lugar para ficar e a prefeitura disponibilizou lugares enormes, áreas em rodoviárias e aeroportos com toda a infraestrutura, banheiros químicos e chuveiros.

Sou a favor disso, acho legal receber as pessoas assim, a maioria são jovens e querem apenas se divertir, viajam pelo mundo de carro e acham engraçado ir chegando nos países sem nada garantido. Como cidadã apoio essa iniciativa e acho importante pensar nessas pessoas.

Mas e os cidadãos brasileiros? São tão invisíveis assim que não merecem uma área com banheiros públicos e chuveiros disponíveis?

Algumas pessoas podem argumentar que para isso existem os abrigos, mas eles são uma realidade que as pessoas não conhecem, se soubessem como funcionam entenderiam porque os moradores de rua têm tanta resistência em passar a noite lá. As pessoas não pode entrar com animais de estimação na maioria dos abrigos e muitos moradores estão sempre com seu cachorro, até por proteção. Os abrigos exigem que os moradores se cadastrem antes para ter acesso, mas ignoram que eles perdem seus documentos de maneiras sinistras onde muitas vezes a polícia está envolvida. Também são comuns os relatos de água fria e violência nesses lugares.

E o que custaria ter pelo menos banheiros químicos na cidade? Ah, uma fortuna, pelo menos os dos estrangeiros são provisórios! É? Mas eles foram instalados com meus impostos e eles não são provisórios, são quase eternos. Não vejo nenhum motivo para não instalar banheiros químicos em uma cidade onde mais de vinte mil pessoas dormem nas ruas. E São Paulo é a segunda cidade onde mais aparecem fezes humanas nas ruas, a primeira fica na Índia.

Para os estrangeiros tudo, seguindo aquela lógica da família real portuguesa, eles ficavam com o bom e o melhor, o resto que explodisse.

Canso de dizer isso, na hora de fazer gracinha para os estrangeiros somos os melhores, ''pagar de gatinho'' é quase esporte nacional, mas respeitar nossos cidadãos e devolver sua dignidade isso ninguém quer saber.

É terrível morar em uma cidade onde uma moradora de rua se sente um ''animal'' por ter que fazer suas necessidades na rua e outra se sente mal por usar jornal no lugar de absorventes, porque mesmo que usasse absorventes onde poderia fazer sua higiene íntima?

Isso não acontece, mas dar asilo a centenas de estrangeiros, inclusive um grupo enorme que depredou as cadeiras de um estádio, tudo bem, brasileiros somos assim mesmos, uns fofos.

Os estrangeiros vão embora achando que somos uma graça de povo, que até chuveiros mandou instalar. Mas ficamos com uma população de vinte mil pessoas na rua e mais de duzentas mil no Brasil inteiro, vivendo na rua como animais, comendo como animais e nem sei se é correto usar a palavra ''animais'', porque conheço muita gente que prefere cortar um braço a deixar seu cachorro dormindo na rua e virando o lixo para comer.

Por que essas pessoas são tão invisíveis e achamos normal a maneira como são tratadas pela prefeitura e governo? Por que sorrimos ao ver os estrangeiros serem tratados como reis enquanto brasileiros morrem na rua?

Alguém vai dizer que esses estrangeiros vão deixar dinheiro aqui, mas se fossem mesmo deixar estariam hospedados em hotéis, assim nas ruas deixam pouco e nada que mude a economia do país e não falo de dinheiro, falo de dignidade, o que custa um banheiro químico?

É triste pensar que um dia muitas pessoas disseram que os negros não tinham alma e os índios não passavam de animais, parece coisa do passado e uma simples anotação ao pé da página, mas esse pensamento é uma realidade que se vive em todo o país. Aqui se acredita que os cidadãos não valem nada e não tem dignidade, como se fossem umas plantas de plástico.

O governo perpetua essa ideia, quem mora na rua é um animal sem alma, não merece nem um lugar, nem chuveiros ou banheiros, ele que se vire com suas necessidades por aí, como se fosse um cão sem dono.

Acho lindo a palavra ''cidadão'', mas sei que vou morrer sem ver ela exercida neste país, aqui não existem ''cidadãos'' para o governo, somos todos uns pobres coitados que se esfolam pagando impostos. Não somos gente, nem temos alma, somos apenas umas sombras que sustentam toda a rede de corrupção que favorece a poucos. Falta muito para chegar a ser um ''cidadão'' aqui, porque ainda nem fomos reconhecidos pelo governo como seres humanos que têm sua dignidade. Nem a isso chegamos ainda.

Iara De Dupont

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