quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Para se ferrar basta ceder

A palavra ''ceder'' deveria ser tirada do dicionário, ou pelo menos jamais dita para uma mulher.
Crescemos nela, nos ambientamos nela, mulheres são educadas para ''ceder'' em tudo, caso contrário a sociedade não anda.
O problema é que ceder tem um custo muito alto e só paga quem cedeu, o outro lado continua tranqüilo. Eu cedi tantas vezes que perdi a conta e só comecei a acordar quando coisas começaram a dar errado e percebi quem me rodeava.

Tive um amigo que me apresentou outro. A amizade deu certo desde o começo e ele trabalhava perto da minha casa, então ia direto lá sem avisar. Com o tempo começou a pegar confiança e ficava mais e mais tempo. Algumas vezes eu chegava da rua junto com ele, cansada, de saco cheio, louca pra entrar em casa, fazer um sanduíche e assistir novela, mas ele era meu amigo, então eu cozinhava alguma coisa e ficávamos conversando. Sempre gostei do papo dele, aprendi demais, porque ele era todo místico, mas a verdade é que ele abusava do meu tempo e do meu espaço.

Hoje quando olho pra trás me pergunto como cedi tanto, eu chegava cansada, exausta no meio da semana e ficava ali com ele, que não tinha me avisado que ia na minha casa.

Um dia tive que mudar de cidade, foi tudo muito rápido e não pude avisar ninguém. Ele ligou para minha casa e minha mãe avisou ele, que não gostou e teve a cara-de-pau de dizer pra minha mãe que amigos não fazem isso, não viajam sem avisar.
Ela me deu o recado e  mandei um email, explicando o que tinha acontecido. Ele respondeu de maneira grosseira, dizendo que não tinha mais nenhum interesse em uma amizade com uma pessoa inconstante como eu.

Ele estava certo, desde o começo a trouxa fui eu, dei espaço e tinha que dar merda, porque quando cedemos sempre dá. Ele nunca ligou e me perguntou se podia me visitar, ia a hora que queria sem perguntar nem dizer nada. Um dia chegou no meio de uma leitura do grupo de teatro que eu estava, foi assistir televisão até acabar e depois voltou a sala. Não pensou que eu estava cansada, de saco cheio e não queria mais saber de gente, esse dia lembro que fiquei muito brava, achei um absurdo que ele tivesse ficado me esperando depois da leitura.

Chegou um momento que alguns amigos pensaram que ele era meu namorado, porque estava sempre na minha casa, mas ele tinha namorada. Não é tudo culpa dele, eu não tinha coragem de dizer nada e nunca disse, carreguei durante anos a ideia de que amizades são assim, a gente tem que apoiar e neutralizei que eu também precisava de apoio e não tinha porque tolerar pessoas invadindo meu espaço.

Nos últimos tempos decidi não ceder mais em nada, ao menos que a outra parte o faça primeiro, então eu abro a conta e vou assim, a outra parte faz, eu faço, caso contrário não me interessa mais. Isso me colocou em uma nova categoria, agora não sou mais a doce Iara, sou a filha-da-puta sem sentimentos. Já me falaram isso, mas não fiquei magoada, era tudo uma questão de perspectiva. É melhor que pensem isso de mim do que eu sentir que fui explorada por não saber dizer ''não''.

Para mim não ceder não me faz uma filha-da-puta, mas entendo que essa é a leitura social, uma mulher que não cede é um elemento perigoso na sociedade, alguém que não é confiável. Sei disso, mas cheguei no meu limite de cansaço e não entendo porque teria que ceder quando as pessoas não cederam comigo, cansei de viver debaixo de idéias que me massacraram e no fundo são apenas a base do patriarcado, que acredita que ser mulher é ceder.

Não ceder muda tudo e a sensação é boa, muito melhor do que aquela ferida que começa a sangrar quando sentimos que alguém se aproveita e passa por cima de nós.
Outro dia um amigo me disse que pensa duas vezes antes de me dizer qualquer coisa, porque nos últimos tempos destrambelhei a língua. Fiquei muito feliz com isso que ele disse, foi um elogio. Depois de décadas cedendo, pra mim é a glória saber que alguém pensa duas vezes antes de me dizer alguma coisa. É bom pensar mesmo, porque ninguém vai cruzar meu limite de novo.



Iara De Dupont

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