segunda-feira, 22 de maio de 2017

Eu e ela

Vou te dar um exemplo. As coisas costumam ficar mais claras com exemplos. Digamos que você precisa fazer uma festa e precise de um bolo para ser entregue ao meio-dia. Não, é claro que eu não organizo festas, já disse que é só um exemplo, senhor, podia ser qualquer coisa, disse bolo porque foi a primeira coisa que me veio à mente e disse meio-dia porque é uma hora única, justamente pra você não me vir com perguntas desnecessárias, do tipo "da manhã ou da noite". Meio-dia é meio-dia e ponto. Mas voltemos ao exemplo. Digamos que seja eu quem tenha que lhe entregar um bolo ao meio-dia e digamos que esteja estabelecido, ao menos tacitamente, que seja eu mesmo quem tenha que fazer o bolo. Isso, nada de comprar pronto, digamos que seja eu mesmo o confeiteiro. Bom, você pode estar certo que você terá um bolo ao meio-dia, muito provavelmente antes, mas não muito, para que o bolo ainda esteja fresco ao meio-dia. O bolo será um bolo medíocre e, por favor, não me entenda mal, não quero dizer que será um bolo ruim, jamais. Quando digo medíocre quero dizer apenas isso mesmo, que o bolo estará na média dos bolos. Agradará, mas sem causar nenhuma comoção, a grande maioria dos convidados, justamente por ser igual à absoluta maioria dos bolos que qualquer um já comeu na vida. Dois ou três julgarão o bolo ruim, mas do mesmo modo, sem qualquer tipo de comoção. Para estes dois ou três será apenas um bolo ruim como qualquer outro bolo ruim que eles já comeram na vida. Para uns e para outros, o bolo será esquecido logo depois dos parabéns, mas todos sairão da festa com o bolo comido e você terá uma superfície comestível para colocar sua velinha. É possível e até mesmo provável, por que não, que num próximo aniversário meus serviços sejam novamente solicitados, agraciado que você ficou com um bolo tão pontualmente entregue e tão dentro das expectativas. E só. Agora, preste atenção, se fosse ela a incumbida de fazer um bolo e lhe entregar ao meio-dia, tudo seria bem diferente. Nas duas ou três noites que antecedessem o dia da festa, ela passaria em claro, pesquisando as mais maravilhosas técnicas para se fazer um bolo, não para copiá-las, jamais, mas para superá-las, para criar um bolo único, um bolo jamais comido. Ela buscaria ingredientes frescos e produzidos com a mais alta harmonia com a natureza.  Faria testes, muitos testes. Estudaria a função que cada ingrediente cumpre na receita e faria uma série de substituições, até chegar num resultado perfeito. E resultados perfeitos, o senhor deve saber, não saem assim do dia pra noite, é preciso ter paciência e, sobretudo, perseverança. Na manhã do dia da festa ela te telefonaria e te diria que tudo corria muito bem, mas que se atrasaria um pouco, e que o bolo certamente chegaria antes dos parabéns. Provavelmente não chegaria. Se fosse para entregar um bolo que não pudesse ser chamado de perfeito, ela não o faria. O senhor pode estar certo que ninguém comeria bolo algum naquela festa e o senhor teria de segurar a vela nas mãos, correndo o sério risco de se queimar com isso. Sim, eu sei, alguém poderia sair apressado e comprar um bolo qualquer na padaria, mas já disse que é um exemplo e é sempre bom tornar as coisas mais extremadas nos exemplos, isso facilita a compreensão. É certamente mais didático e tudo o que mais quero aqui é ser didático, quero que o senhor entenda o que se passa entre nós. Bom, voltando ao bolo, ele finalmente ficaria pronto duas ou três semanas depois da festa e ela te chamaria orgulhosa para experimentá-lo com café. Curioso, é provável que você fosse, sobretudo porque ela nada cobraria e talvez até te pagasse algum. Você ficaria bem puto com a falta de profissionalismo, mas por um motivo bem razoável não demonstraria nenhum tipo de chateação, o bolo estaria de outro mundo, o que não quer dizer exatamente que seria um bolo delicioso, mas seria de outro mundo. Talvez você até já tenha provado bolo mais gostoso, mas nenhum tão inesquecível. Você talvez nem saiba explicar porquê, talvez nem goste do sabor, mas você jamais esquecerá daquele bolo e se lamentará até a última migalha de não ter tido a possibilidade de ter este bolo pra sua festa. E se no ano seguinte você se antecipar e lhe encomendar o bolo com quatro meses de antecedência, pode esquecer, por nada neste mundo ela se sujeitaria a fazer o mesmo bolo outro vez e, duas ou três noites que antecedessem o dia da festa, ela passaria em claro, pesquisando as mais maravilhosas técnicas para se fazer um bolo. O quê? Como assim demonstrei hesitação nessa segunda parte? É claro que estou nervoso ou o senhor acha fácil me expor desse jeito? Está certo que estou falando por meio de suposições, de exemplos imaginados, sim, é claro que são imaginados, senhor, eu lá tenho cara de boleiro? Está certo que falo em termos de eu e ela, mas o tempo todo sei que o senhor sabe que estou falando de mim, ou melhor, de nós, quero dizer, não de mim e do senhor, mas de mim e de minha esposa, é claro. E sim, o senhor tem razão ao dizer que fui impreciso. É certo que eu disse que na verdade o bolo não chegaria, mas o mais provável é que chegasse. Jamais chegaria ao meio-dia. Isso nunca. Jamais. E agora não estou sendo impreciso. Pode anotar aí. Jamais chegaria ao meio dia. O desespero tomaria conta de quem estivesse organizando a festa, provavelmente o tal bolo de padaria seria mesmo comprado, mas o bolo dela chegaria, está feliz agora? Eu admito que o bolo chegaria, mas olha lá, chegaria cinco minutos antes dos parabéns, quando ninguém mais acreditasse que ele pudesse chegar e ela ainda sairia na foto soprando as velinhas. É o que eu digo, é o que eu acho, pode anotar aí. A reação das pessoas? Ah, nisso eu não mudo uma palavra do que já disse. Seria mesmo um bolo de outro mundo. Para o bem ou para o mal, senhor.

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