A rachadura no teto o
irritava, mas não tinha ânimo para arrumá-la. Aliás, não tinha ânimo para mais
nada. Às vezes desejava ser o inseto de Kafka, pelo menos alguma coisa
diferente aconteceria. Tinha dias que não saía de casa. A única coisa que o motivava a levantar daquela cama com
os lençóis suados pelo calor era alimentar os sete gatos que cultivava no
quintal.
Se sentia um jovem Dustin Hoffman em “The Graduate”,
mas sem sua Elaine. Sem dinheiro, sem emprego, sem nada. À deriva do mundo, esperando algo acontecer
para melhorar. Sentou-se na beira da
cama e resolveu começar o dia. Olhou à sua volta e o desânimo bateu mais forte.
Ali era favela, era feio. Não tinha verde, não dava para ver o mar. Pensou em
sair para pedalar, para longe dali, mas teve mede se ser assaltado e perder sua
magrela. O calor era demais até para tomar café. Pegou seu copo de água gelada
e mandou para baixo. Aquela sensação de limpar tudo por dentro o fez ter
vontade de vomitar.
Lembrou-se de que era
hoje que sairia o resultado de um dos muitos concursos que havia tentado nos
últimos meses. Ligou seu computador, mas nada ainda. De repente olhou para o
relógio e percebeu que passara as últimas três horas imerso em um jogo online.
Pelo menos ali era o herói, era reconhecido, sabia que era útil para seu time.
Entrou novamente no
site e ali estava o arquivo em PDF o esperando. Procurou seu nome na lista.
Aprovado. Tinha sido aprovado. Teve vontade de ficar feliz com aquilo! Mas não
conseguiu mexer nem o canto da boca para fazer um auto sorriso. Estava feliz? Aquilo
só significaria que iria ter que acordar cedo, enfrentar o trânsito e o calor
da cidade, passar dez horas enfurnado em uma sala com ar condicionado fingindo
que estava fazendo alguma coisa importante.
Todos fingem nessa
sociedade estúpida que criamos para nós mesmos. É a única maneira de sobreviver
a ela. O que faria agora? Tinha que juntar uma caralhada de documentos e
começar a labuta burocrática antes mesmo de começar a trabalhar. Tinha dois
dias para fazer isso.
Foi à cozinha, pegou
mais um copo de água gelada e tomou. Coçou a bunda, olhou para os gatos, que
brincavam inocentes no quintal de cimento. Como queria ser um gato e poder se
satisfazer com o solzinho da manhã, ou com os brinquedinhos eventuais. Tinha
que colocar comida para eles.
Entrou debaixo do
chuveiro desligado e deixou a água cair. Colocou uma bermuda e uma regata para
enfrentar o calor. Enquanto trocava de roupa esbarrou-se em sua bicicleta. Devia ter meses que estava ali, parada, no mesmo lugar, estorvando. Bem
que poderia encher seus pneus e tentar ir ao centro com ela. Já não tinha mais
nada a perder mesmo, que se foda!
Colocou a pochete por
baixo da blusa com sua chave, seu pen drive e seu celular. Foi empurrando a
bike até a saída de casa e o barulhinho já lhe trouxe boas lembranças. Ajustou
o banco a sua altura, montou e começou a descer o morro.
Deliciosamente o vento
batia em seu rosto e de repente todos os barulhos e toda a feiura a sua volta
foram esquecidos. Era ele e uma extensão dele mesmo, em alta velocidade. Chegou
ao final do morro e automaticamente virou à esquerda sem pensar, como se seus
músculos ainda se lembrassem de tudo. Chegou à avenida lotada de carros
parados, ultrapassou todos eles. Pedalou mais uns dez minutos até chegar à
orla. O mar, tão sem graça. Mas estava hoje tão bonito. O cheiro de água
salgada e o murmurinho das ondas logo lhe vieram como uma sensação de estar em
casa, uma casa aconchegante.
Por um segundo havia se
esquecido para onde estava indo. Ah sim, o concurso, os documentos! Lembrou-se.
E naquele momento, sorriu para si mesmo por alguns segundos.
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