segunda-feira, 15 de maio de 2017

Inércia

A rachadura no teto o irritava, mas não tinha ânimo para arrumá-la. Aliás, não tinha ânimo para mais nada. Às vezes desejava ser o inseto de Kafka, pelo menos alguma coisa diferente aconteceria. Tinha dias que não saía de casa. A única coisa que o motivava a levantar daquela cama com os lençóis suados pelo calor era alimentar os sete gatos que cultivava no quintal.

Se sentia  um jovem Dustin Hoffman em “The Graduate”, mas sem sua Elaine. Sem dinheiro, sem emprego, sem nada.  À deriva do mundo, esperando algo acontecer para melhorar. Sentou-se na beira da cama e resolveu começar o dia. Olhou à sua volta e o desânimo bateu mais forte. Ali era favela, era feio. Não tinha verde, não dava para ver o mar. Pensou em sair para pedalar, para longe dali, mas teve mede se ser assaltado e perder sua magrela. O calor era demais até para tomar café. Pegou seu copo de água gelada e mandou para baixo. Aquela sensação de limpar tudo por dentro o fez ter vontade de vomitar.

Lembrou-se de que era hoje que sairia o resultado de um dos muitos concursos que havia tentado nos últimos meses. Ligou seu computador, mas nada ainda. De repente olhou para o relógio e percebeu que passara as últimas três horas imerso em um jogo online. Pelo menos ali era o herói, era reconhecido, sabia que era útil para seu time.

Entrou novamente no site e ali estava o arquivo em PDF o esperando. Procurou seu nome na lista. Aprovado. Tinha sido aprovado. Teve vontade de ficar feliz com aquilo! Mas não conseguiu mexer nem o canto da boca para fazer um auto sorriso. Estava feliz? Aquilo só significaria que iria ter que acordar cedo, enfrentar o trânsito e o calor da cidade, passar dez horas enfurnado em uma sala com ar condicionado fingindo que estava fazendo alguma coisa importante.

Todos fingem nessa sociedade estúpida que criamos para nós mesmos. É a única maneira de sobreviver a ela. O que faria agora? Tinha que juntar uma caralhada de documentos e começar a labuta burocrática antes mesmo de começar a trabalhar. Tinha dois dias para fazer isso.

Foi à cozinha, pegou mais um copo de água gelada e tomou. Coçou a bunda, olhou para os gatos, que brincavam inocentes no quintal de cimento. Como queria ser um gato e poder se satisfazer com o solzinho da manhã, ou com os brinquedinhos eventuais. Tinha que colocar comida para eles.

Entrou debaixo do chuveiro desligado e deixou a água cair. Colocou uma bermuda e uma regata para enfrentar o calor. Enquanto trocava de roupa esbarrou-se em sua bicicleta. Devia ter meses que estava ali, parada, no mesmo lugar, estorvando. Bem que poderia encher seus pneus e tentar ir ao centro com ela. Já não tinha mais nada a perder mesmo, que se foda!

Colocou a pochete por baixo da blusa com sua chave, seu pen drive e seu celular. Foi empurrando a bike até a saída de casa e o barulhinho já lhe trouxe boas lembranças. Ajustou o banco a sua altura, montou e começou a descer o morro.

Deliciosamente o vento batia em seu rosto e de repente todos os barulhos e toda a feiura a sua volta foram esquecidos. Era ele e uma extensão dele mesmo, em alta velocidade. Chegou ao final do morro e automaticamente virou à esquerda sem pensar, como se seus músculos ainda se lembrassem de tudo. Chegou à avenida lotada de carros parados, ultrapassou todos eles. Pedalou mais uns dez minutos até chegar à orla. O mar, tão sem graça. Mas estava hoje tão bonito. O cheiro de água salgada e o murmurinho das ondas logo lhe vieram como uma sensação de estar em casa, uma casa aconchegante.

Por um segundo havia se esquecido para onde estava indo. Ah sim, o concurso, os documentos! Lembrou-se. E naquele momento, sorriu para si mesmo por alguns segundos.

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