Como ninguém apareceu para  resgatá-lo, ergueu-se com dignidade. Recomposto, espanou com as mãos o  pó do uniforme, colocou seu capacete azul embaixo do braço e foi  procurar ajuda.
Encontrou uma praia (ou foi encontrado por ela).  Sentia no rosto uma solidão solar – e o único ruído audível era o  barulho das ondas quebrando de mansinho. Havia um pressentimento  rondando, algo que ansiava por tradução, um sussurro qualquer vindo de  não sei onde.
Um vira-lata famélico apareceu no horizonte.  Daquela distância ainda era impossível precisar se o que ele trazia na  boca era um osso ou um simples graveto. “Se tem cão, tem gente”,  raciocinou.
E ele seguiu aquela pista. Mas o cão, embora magro,  era do tipo velocista – o que impediu que o homem-bala se aproximasse  muito.
Por sorte (ou por aquilo que até aquele momento ainda não  podia ser chamado de azar), o animalzinho tinha corrido em direção a uma  cabana simples, fincada no pé de uma geométrica e caprichosa formação  rochosa.
A porta só não estava aberta porque não havia nenhuma  esperança de porta ali. O jeito foi bater palmas e aguardar uma  resposta. Silêncio. “O dono foi pescar ou tomar banho de mar”. Sem outra  alternativa, o homem-bala entrou.
O lugar estava abandonado.  Não. Isso não é verdade. Tinha um cão magro (que mordia um osso ou um  graveto) escondido embaixo de uma mesa. Em cima dela, um prato de  espaguete, talheres de prata e uma taça de vinho tinto.
Uma  tentação que o homem-bala só não superou porque sons estranhos saíam de  sua barriga. “Eu pago”, repetiu para si mesmo – sem notar que estava sem  a sua carteira.
Enquanto degustava aquele banquete, notou que o  cão aconchegava-se entre suas pernas. Sentiu-se em casa. Ensaiou um  sorriso e foi, lentamente, pegando no sono.
Dormiu. Ou achou que  tinha dormido. Acordou com um leve toque no ombro. Ao virar-se, demorou  para entender que criatura era aquela. Teve a sensação de que o sujeito  ao seu lado era um anão – mesmo sabendo que ele deveria ter mais de  1,80m de altura. “Gostou da refeição?”, perguntou o suposto anão.
Antes  que pudesse responder afirmativamente, o anfitrião disse que o  espaguete tinha sido uma dica de um velho amigo. “Quando soube da sua  chegada, perguntei ao seu avô sobre o seu prato predileto”, comentou.
O  homem-bala tentou corrigir o anão de 1,80m. Afinal, seu avô, o primeiro  homem-bala da família, havia morrido na Revolução de 1932. “Eu agradeço  o espaguete, mas eu não sou a pessoa que você estava esperando”,  argumentou.
Um pouco curvado para não bater a cabeça no teto da  cabana, o anão (que agora parecia ter quase 2 m de altura) soltou uma  gargalhada que fez a praia toda estremecer. Assustado, o homem-bala  apanhou o capacete azul, que estava sobre a mesa, e, sem despedidas,  fugiu em direção à praia.
Avistou dezenas de pessoas saindo do  mar. Feito uma bala (típico do homem-bala), correu ao encontro dos  banhistas.
Era como se o mar regurgitasse suicidas. Uma gente  pálida, muda, alheia ao tempo, caminhando pela areia com uma rosa de  Iemanjá na mão esquerda. O homem-bala bem que tentou, mas ninguém  percebeu sua presença.
Sentou-se na beira daquele mar estranho.  Seus pensamentos viajavam para uma galáxia distante quando sentiu o cão  famélico se aproximar. O que o animal trazia na boca não era um osso,  nem um graveto. Mas um dedo. O dedo médio do homem-bala.    
domingo, 4 de abril de 2010
O dilema do homem-bala: osso ou graveto?
Foi uma aterrissagem desastrada. O excesso de  pólvora ou um erro na calibragem do canhão atirou o homem-bala para  muito além dos limites da cidade.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Sensacional!
ResponderExcluirUma leitura cativante até o último instante, um final imprevisível pelo começo. Uma perspectiva diferente a respeito da morte. Adorei.
Há espaguete após a morte!
ResponderExcluir