O pai em questão era um funcionário dedicado, cumpridor de horários e boa praça. A filha em questão tinha recém completado seu primeiro aniversário e acabara de ingressar à creche da repartição. Nada mais conveniente. O pai deixava a pequena menina na creche e seguia tranquilo para seu posto de trabalho, onde cumpria zelosamente às suas atividades em prol do bem público. Por mais trivial que este trâmite cotidiano possa parecer, esta rotina tinha aproximado pai e filha. A pequena ainda estava ensaiando seus primeiros passos, então o pai a levava agarrada ao corpo, numa dessas curiosas invenções humanas que se apropriam da engenhosa anatomia marsupial.
Faziam a maior parte do caminho a pé ("faziam" é modo dizer, já que era somente o pai quem efetivamente caminhava) uma vez que a repartição ficava num desses pequenos oásis da urbe onde ainda existem árvores - considerável parte delas frutíferas - e animais de boa índole em quem se pode confiar. A menina, a despeito do mau humor e rabugice que uma caminhada matutina possa sugerir para alguns, espalhava sua simpatia infantil manifestada por um sorriso ainda banguela e por um insistente e terno chacoalhar de mãos, para todo aquele ou aquela que cruzasse seu caminho (e quando digo "todo" estou sendo literal, já que a menina não fazia qualquer tipo de distinção e cumprimentava até os menos cumprimentáveis, arrancando sorrisos até de pessoas que aparentemente não tinham este hábito e que o praticavam pela primeira vez em séculos).

Tal como fogo num pavio, a noticia do congelamento salarial foi se alastrando por todos os cantos da repartição. "Mais valia não ter me esforçado tanto" - dizia um - "mais valia ter ficado em casa" - afirmava outro - "mais valia era ter mandado este desditoso senhor congelar o salário da boa senhora que o concebeu" - vociferava um escriturário um pouco mais exaltado - "mais vale entrarmos em greve!" - decidiu a Maioria - esta senhora sempre tão democrática - em assembleia. E a greve se iniciou. No dia seguinte ninguém trabalhou.

As idas à creche cederam lugar às idas às assembleias. O destino mudou, mas a simpatia da menina continuava a mesma. Seu público, no entanto, se ampliou bastante. Agora, a menina brincava entre os mais variados tipos e já não usava suas mãozinhas apenas para dar tchau aos passantes, mas também para bater palminhas sempre que algum companheiro da classe trabalhadora se inflamava ao microfone. Foi numa dessas ocasiões, inclusive, que a menina pronunciou sua primeira palavra: "precarização", para grande surpresa de todos que estavam ao redor.
A greve e a menina pareciam ter sido feitos um para o outro. O pai, que no incio estava receoso, foi logo ficando mais relaxado e permitindo que a menina transitasse livremente entre a massa de grevistas. Ela ia de colo em colo e recebia o mimo de todos. De um ganhou uma bandeira vermelha a qual aprendera a manusear com maestria, de outro ganhou um apito que utilizava sempre nos momentos em que a massa se exaltava. Era o mascote da greve.

Quem não queria saber de dialogar com ninguém era o dirigente da repartição. Para ele, a greve não fazia nem cosquinhas e ele seguia declarando para a imprensa que não aumentaria um tostão furado o salário de ninguém! E era bom que parassem de brincar de greve e voltassem logo ao tronco porque, do contrário, não receberiam nem o pouco a que tinham direito!
Tamanha intransigência e inabilidade administrativa serviriam para desanimar qualquer pessoa de ideias frouxos, mas este não era o caso. A greve continuava ainda mais forte. "Não tem arrego! Não tem arrego", gritavam todos. "Arrego", foi logo incorporado ao já sofisticado vocabulário da menina.
Ao término do sétimo mês de greve, a menina completou toda sua dentição (com exceção, é claro, dos chamados "dentes do siso", ainda que juízo não fosse algo que faltasse à menina"), motivo pela qual abandonou completamente sua dieta composta essencialmente de alimentos pastosos e de fácil deglutição e passou a ingerir, sem medo, alimentos mais consistentes. A noticia foi recebida com alegria por todos, que agora poderiam oferecer-lhe toda a sorte de sanduíches e outras guloseimas que o sindicato disponibilizava em todas as assembleias, os chamados X-Greve. Não tem arrego! Não tem arrego!
Com o irrestrito apoio do governador do estado, o dirigente da repartição começou a endurecer as coisas. As prisões, episódios apenas pontuais no inicio da greve, transformaram-se em acontecimentos rotineiros. A policia estava autorizada a prender por qualquer motivo e até mesmo por motivo nenhum, caso o policial não fosse com a cara do suposto meliante. O movimento grevista teve que se fortalecer para a libertação dos presos políticos. A massa grevista tomou as ruas e foi pedir apoio da população. "Não tem arrego! Não tem arrego", diziam os cartazes. "Não tem arrego! Não tem arrego", gritavam os grevistas.

O pai e a menina, é fundamental que se diga, mantinham-se firmes na luta. A menina, que completara toda sua alfabetização criando os cartazes utilizados nas manifestações, tratara de ampliar de uma vez por todas seu universo cultural e substituíra, por conta própria, o seu acervo literário. Os livros coloridos de autores como Monteiro Lobato, Ziraldo e Tatiana Berlinky cederam lugar a obras de maior densidade e intenso conteúdo político: Bakunin, Proudhon, Thoreau, Lenin e outros. Como presente de aniversário de 10 anos, a menina pedira de presente a seu pai uma coleção dos escritos de Marx e Engels e organizou um grupo de estudos entre os grevistas. O pai passou a não acompanhar mais o raciocino da filha - eram poucos que conseguiam - mas sempre a apoiava em tudo.
Foi quando apareceu uma ponta de esperança. Após 17 anos de tentativas frustradas de diálogo com a direção da repartição, um dirigente enfim apareceu em uma reunião de negociação. Sua proposta era a de que todos os presos políticos seriam soltos imediatamente, com a condição de que todos os grevistas voltassem aos seus postos de trabalho na manhã seguinte. Aquilo era golpe baixo! A luta não poderia acabar daquela maneira. "Não tem arrego! Não tem arrego!" - foi a resposta de todos em assembleia.

O pai da menina já não se lembrava mais porque a greve tinha começado mas, mesmo já tendo se aposentado, continuava acompanhando a filha às manifestações. A menina era agora uma mulher que já entrava nos quarenta e tinha sido eleita por ampla maioria de votos a nova presidenta do sindicato. Agora ela era a voz da greve, a líder sindical, aquela que levaria todos à iminente vitória! "Não tem arrego! Não tem arrego!" - disse ela em seu inflamado discurso de posse.
No dia seguinte, pai e filha iriam juntos à repartição...
\o/ \o/ \o/ \o/ O \o/ \o/ \o/ POVO \o/ \o/ \o/ UNIDO \o/ \o/ \o/ É \o/ \o/ \o/ GENTE \o/ \o/ \o/ PRA \o/ \o/ \o/ CARAMBA!
ResponderExcluirIa elegê-lo como, de longe, o seu melhor texto, mas achei que seria injusto com o conjunto da obra... Que ainda não li por inteiro... Ai, ai...
ResponderExcluirô loco, vc começou a ler meia noite e só terminou meia noite e trinta e dois? Acho que desta vez exagerei mesmo! Muito obrigado pelas palavras lisonjeiras, mas trate de ler toda minha extensa obra! Rsrs...
ExcluirO que mais me impressiona na greve ainda são os obstinados por chegarem ao trabalho a qualquer custo. Daí a gente precisa de algum tipo de serviço desse pessoal e eles ficam enrolando...
ResponderExcluirVergonha desse tipinho de gente, Alexandre. A menina os abomina!
ExcluirEm tempo: mas vergonha alheia mesmo oram certos alunos que organizaram o "estudaço" em oposição ao "cadeiraço"... aff!
ExcluirKkkkkkkkk
ResponderExcluirAdorei, Fefe!
A história incrível, o tempo passando, e todos os seus curiosos detalhes, como os animais de boa índole, os trabalhadores boa praça, sem falar da primeira palavra da menina... demais!
Vale lembrar que qualquer semelhança com fatos reais não é mera coincidência ;)
Ah, você é uma japa muito boa praça e de boa índole! :) Valeu!
ExcluirPois é, não tem nada de coincidência... Julinha que o diga!
Muito bom Larios, a tempos não comentava nada (fato que alguns estavam adorando rsss), mas achei que este texto merecia aplausos. Cuidado, seu eu voltar a comentar todos os dias, não vai ter arrego.
ResponderExcluirÉ isso ae, Risa! O mundo sente a falta de seus comentários desmotivantes! Não tem arrego!
ResponderExcluirAbraço!
hahahaha! Demais, Felipe!! Fiquei imaginando certa menininha dizendo "precarização", hahahah! Adorei também a estrutura do texto, parecendo um conto de fadas, rs
ResponderExcluirValeu, Sirley!
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