quinta-feira, 21 de setembro de 2017

"Você é tudo, e tudo é você..."

Era um dia como qualquer outro. Lá estava ela indo para o seu serviço, enquanto olhava as paisagens passar pela janela. Olhava as crianças nas calçadas, e sentia saudade de sua infância, das bonecas que há muito deixara para trás. 
Divagava em meios aos pensamentos diversos que nos atingem nessas viagens de ônibus. Se considerava uma pessoa de sorte por poder sentir aquilo que sentia: a paz.

Num determinado momento da viagem, numa parada do coletivo, viu subir um rapaz, bem apessoado. Ela era a única naquele ônibus, àquele horário. Todos os outros assentos estavam livres.

O rapaz fazia uso de fones de ouvido. Escutava algo no seu celular.

Para surpresa da moça, o garoto sentou ao seu lado. Foi educado, pediu licença, mas ela estranhou.
Por quê o menino não procurou outro lugar pra sentar? O ônibus estava vazio. Só ela de passageira.

Ia pensando nessas coisas quando o rapaz perguntou assim, de repente:

- Moça, posso pedir um favor?

A cara de espanto que ela fez foi impossível de disfarçar. 
Meio sem jeito, meneou positivamente com a cabeça.

- Poderia ouvir uma música comigo? Te dou um lado do fone, e a gente ouve!
Por favor... É muito importante pra mim...

- Lógico, óbvio, claro que ela ficou desconcertada. Afinal, um estranho estava ali ao seu lado, e pedia que ela ouvisse o quê ele estava ouvindo.

- É que vou descer já já... - Tentou desvencilhar-se ela.

- Por favor, eu insisto... A música é curtinha...

Não tinha jeito. 
Pensou durante uns dez segundos, olhou para o rapaz, no qual não sentiu maldade, e por isso, aceitou o convite.

Colocou então o fone em sua orelha direita. O rapaz, por sua vez, ficou com seu fone na esquerda dele.

Play apertado, eis que a música inicia. 
Era uma música romântica, mas totalmente fora da situação da qual ela participava no momento.
Teve o ímpeto de perguntar para o menino o por quê de ser justamente aquela música, mas quando voltou seu rosto para o mesmo, percebeu que ele estava com os olhos fechados.

Ficou então sem graça de perguntar.
O quê será que aquela música despertava nele? E por quê justamente ela foi convidada por ele para ouvi-la com ele?

Claro, com o ônibus vazio, ele poderia ter se sentado em qualquer uma das poltronas, mas não. Foi até ela, e fez aquele convite. 

"Você é tudo, e tudo é você..."

Ela já conhecia aquela letra, aquela melodia. A música era antiga. Tristemente romântica, romanticamente triste.

Decidiu então seguir viagem, ouvindo a música ao lado do rapaz, que viajava no coletivo ao lado dela, e em seus pensamentos, através da canção.

Estranho.

Sentiu uma tristeza. Não sabia por quê. 
Na realidade, até pensou saber: Tratava-se do garoto, que também tinha uma fisionomia triste.
Mas começou a pensar que achava isso pelo motivo de a música ter uma melodia triste, e que aquele estranho sentimento era fruto da emoção causada por aquela faixa.

De olhos fechados, o menino não parecia mais estar ali. 
Dois minutos e cinquenta e sete segundos que pareceram uma eternidade.
A promessa do menino revelara-se verdadeira. A música foi curta.

Quando acabou, e o silêncio veio, parecia que ela não ouvia o ronco do motor. Não ouvia mais nada.
Se perdeu no momento do estranho menino.

Ele abriu lentamente seus olhos, e só então ela percebeu que suas mãos eram seguradas pelas dele. 
Recuou então, como quem pede desculpas. Ele deu um leve sorriso, guardou o celular no bolso.

- Muito obrigado! Jamais esquecerei esse momento. Não se esqueça de que, se ainda não é, você ainda será tudo na vida de alguém. Seja feliz!

Sem saber o por quê, seus olhos marejaram. Num sinal de positivo, apenas balançou levemente a cabeça pra cima e pra baixo.

O ônibus parou, e o rapaz se foi.

Nunca mais o viu.
Mas não existe uma só vez em que escute a música, e não se lembre dele.

"Você é tudo, e tudo é você..."
Publicado originalmente aqui.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Descobriram

Quarta-feira. Já era tarde e eu estava dormindo quando o telefone tocou. Olhei o número para saber se eu poderia atender xingando. “Número privado”. Ótimo, além de tudo eu teria que ser diplomático. Tentei disfarçar o sono com um lacônico “alô”. Como resposta só consegui ouvir um “Descobriram...” antes que a ligação caísse. Era só o que faltava. Algum idiota ligou para o número errado. O jeito era voltar pra cama e amaldiçoar o sujeito até pegar no sono de novo.

Foi só deitar para surgir a dúvida. E se não foi engano? De repente alguém estava tentando me avisar sobre algo que descobriram! Mas o que era tão urgente que não poderia esperar pelo dia seguinte?

Corri para as redes sociais. Facebook, Instagram, Twitter, Whatsapp, portais de notícias. Nenhuma descoberta bombástica que justificasse a ligação misteriosa. Pensei em ligar para os amigos mais próximos. Loucura. Como eu explicaria uma ligação tarde da noite perguntando se descobriram alguma coisa? Pareceria uma ligação de um ex, bêbado, em plena madrugada de sábado.

Descobriram algo sobre mim, só pode ser. Mas o quê? Eu que sou tão correto. Comecei a vasculhar a memória para saber o que poderia me denunciar. Aproveitei que o computador ainda estava ligado e apaguei todos os meus arquivos. Filmes, músicas, séries, e-books... pirataria é crime!

Mas não fiquei tranquilo. Tem tanto computador pirateando arquivos no mundo, por que logo o meu? Pode ter sido algo no mundo real, ao invés do virtual. Teve a vez que eu furei fila no banco, mas já faz tempo! Eles cobram taxas abusivas e eu vou ser punido por isso?

Quando a moça do supermercado me devolveu troco a mais eu só percebi quando cheguei em casa, não iria voltar lá por causa de mixaria. As uvas que eu belisquei antes de pagar foi para experimentar e ver se estavam gostosas! Além do mais, o cliente tem sempre razão.

Confesso que só não apelei para o meu advogado porque não tenho um advogado. Nunca precisei, sempre falei mal deles, mas agora me retrato, falei mal, mas não foi por mal, só fui na onda dos amigos! O que eu não daria por um habeas corpus preventivo numa hora dessas.

Já passava das quatro da manhã, eu havia desfeito o gatonet, listei um grupo de pessoas para as quais eu pediria desculpa, por vezes sem nem saber o porquê, imaginei todas as situações possíveis. Olha, aquele pum no ônibus lotado foi sem querer, eu estava distraído e... bobagem. Quem iria descobrir?

O primeiro raio de sol do dia foi como a lâmpada de ‘eureka’ brilhando na minha cabeça. Eu passei pela faixa de pedestre sem parar para que aquele pobre coitado atravessasse! Pude reconstituir o olhar de fúria que ele me lançou quando busquei sua reação no retrovisor. Adiantaria pedir desculpas? Ele deve ter anotado a placa, fez uma busca detalhada, encontrou toda a documentação do carro, tinha meu endereço, telefone, sabia onde eu trabalhava.

Eu estava acabado. A falta de sono e o peso de ser um criminoso me deixaram com uma aparência cadavérica. Não havia decidido se eu me entregaria para a polícia ou se tentaria o habeas corpus preventivo. Uma coisa era certa, minha vida havia mudado. Não poderia seguir como se nada tivesse acontecido.

A primeira ação do dia seria pedir demissão. Martelava na minha cabeça a voz do capitão Nascimento. “Pede pra sair!” e eu pediria. Melhor que ser escoltado por policiais brutamontes na frente dos colegas de trabalho, em uma condução coercitiva.

Quando cheguei ao escritório todos estavam reunidos na sala de café, como de costume. Entrei sem jeito e antes que pudesse fazer o fatídico anúncio, o Lobato me encarou.

“Rapaz! Você está acabado, hein? Te liguei ontem à noite, mas meu crédito acabou. Descobriram o endereço do cliente?”

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Diploma de ódio

Dentro de todas as mentiras que nos fizeram acreditar, uma se destaca: o ódio que uma mulher sente pela outra.
Poucas mentiras tiveram mais poder do que essa, foi escrita nas pedras, desenhada nas paredes e tatuada no chão.

É fato que o ódio existe e navega pelo coração humano, mas não está direcionado a todas as pessoas de um gênero ou outro que cruzem no seu caminho. Odiar uma mulher que um dia te prejudicou não significa ''odiar'' todas.

Mas ódio ensinado é pior do que arma carregada, sempre está ali em alerta, acorda ao menor sinal e não escuta argumentos nem explicações.

Escutei uma conversa entre duas jovens, sobre uma terceira que estava acabando um mestrado. As duas jovens fizeram uma lista de motivos pelos quais o mestrado da terceira não valeria nada, a lista incluía suposições de que ela teria recebido ''ajuda'' de um professor, que a faculdade era ruim, que nem era bom o mestrado, enfim, parecia que tudo levava a mesma conclusão: o importante era odiar a moça.

Depois de um tempo elas voltaram a conversa e começaram a se divertir com uma história, parece que a moça que fez o mestrado tinha ficado muito tempo longe dos estudos, ficou insegura e contratou uma professora particular para dar uma refrescada e assim tentar um vestibular. Ficou dois anos com aulas particulares, e não eram tanto para se fortalecer nas matérias, mas para vencer sua insegurança. Depois conseguiu entrar na faculdade e acabou fazendo um mestrado.

Não sei os motivos da insegurança da moça, mas posso adivinhar um por um, porque são iguais ao de todas. Crescemos escutando que é bom estudar e ser inteligente, mas não é por essas qualidades que o teu príncipe vai te achar e se apaixonar, ele procura beleza e você tem que ser linda para ser amada.

Sem beleza, não tem amor e quem quer viver assim? Cercada de diplomas e sem um Romeu?

E nas ruas o discurso continua, mulheres fortes que entraram na política ou subiram nas carreiras sempre são criticadas pela sua aparência, quantas vezes escutei e li pessoas dizerem sobre mulheres poderosas ''que bom que é alguém na vida, porque com aquela cara e corpo, não vai achar marido''.

Pois é, isso é dito a todas, a cada segundo, a cada minuto, a cada hora, sem beleza não há vida e diplomas são para as feias, as que não tem outro jeito de sobreviver no mundo, já que não vão conseguir um ''macho'' para sustentá-las.


Somos doutrinadas para sonhar em sermos divas e um dia de nossas vidas, nem que seja um dia, entrar em um lugar e ser vista por ''ele'', essa figura mítica masculina que rege nossas vidas.

E quem é incentivada a sonhar com um mestrado, um doutorado? Não dá tempo!

E colocar um negócio propio? Já viu mulher lidar com o mundo real? Não consegue!

Estudar para muitas é um grande sacrifício, não pelo tempo, mas pela crença de que não é boa o suficiente para aquilo, porque a mensagem é sempre a mesma, mulheres são emocionais e não enfrentam bem os desafios acadêmicos.

E o outro lado da moeda também se aplica, o truque é fazer a mulher se sentir mal, então alguém pergunta se ela estudou, responde que não e logo vem o julgamento ''nossa, mas podia ter pelo menos terminado o ensino médio''.

Ah, sim, mulheres que não estudam se sentem mal, mulheres que estudam se sentem mal. É o mesmo jogo. 

Muitas mulheres que não estudam não o fazem por diversos motivos, o excesso de trabalho, responsabilidades, um marido inútil, filhos pequenos, mas o principal motivo é que não se sentem inteligentes o suficiente, se veem pequenas diante de um tubarão que não existe. Essas mulheres levam orçamentos domésticos, mas não se acham capazes de passar em uma prova de matemática, lidam com centenas de problemas todos os dias, mas não acreditam poder cumprir prazos de trabalhos e provas.

E tudo isso é mentira armada, ódio plantado. O patriarcado nunca quis mulheres em bancos de escolas e faculdades, não é do interesse deles nossa entrada a nenhum mundo que os faça perder o controle que tem sobre nossas vidas.

Nossa suposta burrice é mentira inventada, e tem sido assim durante séculos, nos fizeram acreditar que o mundo acadêmico é demais para nossas pequenas mentes. Depois plantaram o ódio que dizemos ter umas pelas outras, e pronto, o dano estava feito. 

Estamos acostumadas a olhar outra mulher com o mesmo olhar que recebemos do patriarcado, de desprezo e ódio.

E era uma história sobre duas jovens que falavam de uma terceira, ironizavam o mestrado que a moça tinha concluído, era ódio líquido que escorria pela boca.

Se a mentira não tivesse atravessado nossa vida seria uma história sobre duas jovens que se inspiraram em uma terceira e resolveram fazer alguma coisa de suas vidas. Pararam de se sentir mal com o que viam os outros fazerem e resolveram se mexer. Podia ser uma história sobre duas jovens que ficaram comovidas com o esforço da terceira, que contratou um professor particular para entrar em uma faculdade. Podia ser uma história de inspiração, uma mensagem extraordinária a todas as mulheres, acreditem na sua capacidade, inteligência e conquistem o mundo.

O bom é que as mentiras são frágeis paredes que um bom martelo derruba e podemos derrubar essa. Não somos burras e podemos estudar, evoluir, ter um negócio, ou ser dona de casa, não importa o que queremos ser, importa não se sentir burra.

O outro problema que o ódio traz é a conta alta, sim, pagamos pelo ódio que sentimos, ele nos puxa para baixo. Cada vez que vemos o sucesso de alguém e pensamos que poderia ser o nosso, vamos para baixo. Ódio não inspira, pelo contrário, te faz sentir mal.

A moça ao lado estudou, mudou de emprego, viajou, começou do zero?
Especular sobre como conseguiu isso e querer diminuir, não ajuda ninguém. Bom mesmo é olhar para o lado e se inspirar, pensar que se ela conseguiu, bom, eu posso estar mais perto do que quero. Foi possível para ela? Pode ser para mim. Em vez de jogar ódio e ressentimento, é melhor se aproximar e puxar uma conversa, conhecer um pouco inspira mais.

Mulheres são inspiradoras pela alta resistência a tudo, pela profundidade do seu amor e intensidade, e porque seguem em pé, apesar de tudo.

Quem está perto e muda algo, te prova que isso é uma coisa possível, sim, podemos reconstruir nossa vida, apesar de toda a terra que é jogada no nosso rosto.

E tenha a certeza, nenhuma mulher teve nada fácil nesta vida, todos escutamos as mesmas bobagens, recebemos as mesmas cargas de ódio e somos convencidas desde pequenas do nosso fracasso.

Quando odiar uma mulher sem motivos se pergunte se é real ou uma reação ao ódio que foi ensinado, se não é apenas um resto do lixo que carregamos. 

E pense duas vezes, se inspire, é mais fácil enfrentar um dragão quando sabemos que alguém já fez isso, do que ficar paralisada sem acreditar que pode fazer isso.

Todas as mulheres tiveram e têm os mesmos desafios, se inspire nas diferentes maneiras de enfrentá-los, de vivê-los.

Era uma história que poderia ser sobre duas jovens falando de uma terceira e no fim dizendo ''poxa, escutei a história dela e me senti inspirada para mudar minha vida, porque ela é parecida a mim, talvez seja eu, talvez seja eu lá na frente, quando tudo já deu certo''.


Iara De Dupont










quinta-feira, 7 de setembro de 2017

independência ou sorte?

Do alto do morro
um urro nos surra o sono

se aproxima ligeiro
aos galopes
solitário

sua ira 
irrompe a noite
e rasga o céu

sem nenhum exército.

do alto do sono
um sonho urra
ansiando morros:

Independência
ou
Sorte?






terça-feira, 29 de agosto de 2017

TERRA - O Filme


domingo, 20 de agosto de 2017

Cultura inglesa

Quando decidi dar um upgrade na minha vida profissional, comecei pensando em um startup. Apesar de ser proativo não costumo ter insight, portanto achei melhor mobilizar contatos da minha network e selecionar alguns stakeholders.

Marquei um meeting com amigos headhunters. Eles me indicaram que o mercado de games estava aquecido. Poderia montar um home office e pegar alguns jobs, afinal eu já estava habituado a ser freelancer.

O deadline dos jobs costumam ser apertados, mas um bom coach poderia me orientar e facilitar as coisas. Logo teria um feedback que me diria se minha startup era ou não um case de sucesso.

Em pouco tempo fui alertado que poderia ter um handicap. Um handicap! Espero que isso não seja dolorido. De qualquer forma, imaginei que um bom outsider poderia me ajudar com isso. Do que não é capaz um bom outsider, não é mesmo?

Não precisaríamos da nada muito formal. Quem sabe uma trip juntos não contribui para fugirmos do maistream e um date na night pode perfeitamente me ajudar a entrar no mundo das offshores.

Por influência do meu manager comecei a pensar em um bom flyer. Isso ajudaria a divulgar meu business plain para os targets, o que, convenhamos, é essencial. Para esse job mais leve eu poderia utilizar o próprio home office, montar uma playlist que me agrada e partir para o make do flyer. Mechandising é tudo.

Depois já estaria tudo encaminhado. Um bom setlist com as tarefas do day by day facilitaria minha vida. Só precisava tomar cuidado com o borderline. Quem, no auge da empolgação nunca se esqueceu do borderline?

Com uma boa interface, que cuidadosamente passei a pronunciar ‘interfeice’, não tenho a menor dúvida de que conseguiria bons sponsors. Resiliência era a chave. Com dedicação e empenho, poderia tranquilamente ser um ageless. Gostei da ideia. Ageless.

Claro que nem tudo é fácil para quem é um self made man. Eu teria que ser CEO de mim mesmo. Aproveitar o happy hour para fazer network, marcar brunchs de negócios e trabalhar para me tornar um shareholder agressivo.

Resolvi não poupar esforços. Minha nova empreitada estava decidia. Ontem mesmo dei meu primeiro passo. Fiz minha matrícula em um curso de inglês.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Os peixes no aquário

Olhei para os peixes, nadando placidamente no aquário. Ocupando o espaço especialmente construído para este fim. Nadando placidamente. Objeto de decoração. Preenchendo o aquário, recortado, montado, criado, especialmente para este fim. Escolhidos a dedo, os peixes, bonitos, de preferência bem vistosos, coloridos, decorados. É preciso ainda que nadem. E brinquem, vez em quando outra, com as plantas subaquáticas, recortadas, montadas, criadas especialmente para este fim. O aquário é objeto de decoração, parque de diversões, paraíso artificial dos peixes especialmente reunidos, não por afinidades, não por laços consanguíneos. Os peixes no aquário selecionados, especialmente recortados, montados e criados para serem coloridos, vistosos, decorados. Plácidos. Não há predadores no recorte. Moleza. O caminho é fácil, plácido, colorido e selecionado. Basta nadar. Não há nem que seguir a corrente, pois o balanço do recorte subaquático é especialmente criado e artificialmente criado para este fim. Peixes estimulados, especialmente pensados a recriarem o movimento natural. Como se estivessem fora do recorte. Do paraíso. Os peixes são vigiados a todo momento. Caso não nadem ou apresentem sinais de rebeldia contra o pacote artificialmente criado, pensado e construído para este fim, são substituídos por outros peixes mais vistosos, decorados, coloridos e plácidos. A imitação da vida natural é uma falácia. Tudo o que vestem os peixes são máscaras. Especialmente colocadas e montadas para este fim. Ser objeto de decoração. Bonito, colorido, vistoso, plácido. Pouco importa se não é este seu habitat. Espera, um dos peixes comeu o outro. Não há moleza neste baile de máscaras. O balanço foi justamente criado, pensado e construído para este fim. Não existe inércia no balanço. Há que se mexer as barbatanas, ainda mais as vistosas, coloridas, decoradas especialmente para este fim.
Não me surpreende se um peixe decide morrer para sair do aquário. Especialmente para este fim.

Childe Hassam - “Bowl of Goldfish”

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Morte e morte de Maria

Maria morria de medo de morrer. Na verdade seu nome era Helena, mas gostava de ser chamada de Maria Helena. É mais chique, dizia ela. Com seus noventa e dois anos, as rugas das expressões brutas dominavam seu rosto. Odiava a vida, odiava as pessoas, odiava não conseguir fazer mais nada. Odiava não enxergar direito. Mas odiava mais a morte.

Lembrava-se frequentemente de quando era criança, no velório do pai. Que péssima lembrança, não devia ficar pensando nisso. O pai morrera de derrame, bem novo, e por isso, sua perna havia encolhido, sua mãe lhe explicara. No velório, na cidade pequena, lembrava-se do bafo do bêbado que, trocando as palavras, interrompera o luto da família. Cidade pequena é cheia dessas coisas.

São da família do falecido? perguntou o bêbado, passando correndo o olhar pela criança encolhida no canto. Forçando os olhos, se aproximou do caixão, chamando a atenção da matriarca da família. A perna dele está errada no caixão, apontou o bêbado para o caixão. Vou arrumar, disse, puxando a perna encolhida para baixo. A perna caiu do caixão.

Que horror, se lembrava Maria Helena. Não quero morrer, não quero ser isso. Não quero ser objeto de riso. Odiava a morte e a fragilidade do corpo. Por isso, pensava tanto nisso. Mas não devia, dizia de si para si.

Nos últimos anos, abandou o catolicismo e se tornou espírita. Na verdade, era uma espírita fajuta, pois nunca vira um espírita com medo de morrer. Afinal, a morte é apenas uma passagem. Ou deveria ser. No fundo, sabia que seria apenas comida de verme.

Invejava os personagens de suas ficções favoritas. Que coragem tinha Brás Cubas, ao dedicar suas memórias ao verme que primeiro roeu as frias carnes de seu cadáver. Por isso, resolveu fazer alguma coisa em relação a sua morte.

Pediu para a família o caixão mais barato. Não queria flores e não queria passar tempo em velório, com medo de aparecer um bêbado ou outra pessoa indesejada qualquer. Vai ser em casa, disse às filhas, que já não conversavam entre si.

Um dia resolveu pedir à neta que a buscasse em casa. Quero dar um passeio, pediu. Aonde vamos, vó? Quero ir ao cemitério novo da cidade, disse decidida.

Foram, e ao chegar lá, pegou todos os folhetos da recepção e foi caminhar pela área cheia de verde. Mas e o túmulo do vovô, por que a senhora não quer ser enterrada lá? - perguntou a neta. Não quero, respondeu. E o túmulo do seu pai e da sua mãe? Não quero ser enterrada perto de gente chata, esbravejou a avó, já resmungando.

Aqui é bonito, mas fica muito longe da cidade, refletiu em voz alta enquanto se apoiava em um corrimão para descer os degraus de volta ao estacionamento. Uai, mas que que tem? Indagou a neta. A senhora vai querer ir comprar pão na padaria todo dia, por acaso? Brincou a neta sorrindo, já acostumada com o jeito da avó.

Deu uma última olhada no cemitério antes de entrar no carro. Pelo menos tem muitas árvores. Resignada, Maria Helena comprou ali seu espaço e esperou silenciosamente o momento de se mudar para lá. 

sábado, 12 de agosto de 2017

Romeu e sua boneca de papel



 

Nos últimos tempos, digo, anos, aprendi a questionar tudo, penso duas vezes cada vez que escuto alguma coisa e chego a várias conclusões. Me pergunto mil vezes a quem convém o que é dito ou o que pode estar atrás disso.

Pode parecer paranoia, mas em um mundo onde a mulher é carne moída, não me parece errado prestar atenção em tudo que nos cerca.

Aprendi a desconfiar de uma figura bem popular, o famoso  ''Romeu'', aquele ser que amamos e na maioria dos casos decidimos dividir a vida com eles.

Mas Romeus não são grátis, nem transparentes, são humanos e neste caso humanos que cresceram debaixo das regalias dadas ao gênero masculino. Mesmo sem querer eles agem de um jeito misógino, educados e doutrinados nos privilégios e no excesso de direitos, ou de pensar que os têm, eles não são os anjos que pensamos que são.

Eu não critico eles abertamente, entendo hoje que são fruto de uma cultura, mas percebo também que a maior responsabilidade é minha, sou eu que tenho que estar atenta as armadilhas, consequências da educação que eles recebem.
Mas para que isso aconteça preciso tirar meus óculos cor de rosa e deixar de ser romântica, ver Romeu apenas como ele é, um homem que é resultado de uma cultura e age de acordo com isso.
Também não gosto disso, se fosse tudo de acordo as minhas fantasias eu preferiria viver em um mundo onde homens são parceiros legais e eu posso relaxar, sem estar atenta aos detalhes. Gostaria de estar em um planeta onde nada tivesse segundas intenções e não viessem coelhos escondidos na cartola, mas não tive essa sorte, sendo assim a melhor coisa que posso fazer é manter os olhos abertos e a mente flexível, deixar meus óculos cor de rosa enterrado no jardim e seguir a vida.

Veio minha amiga dizer que mudou de ideia, vai colocar silicone. Ela sempre foi magra e com pouco seio, mas dizia estar feliz desse jeito, seguiu um tempo a carreira de modelo e isso parecia ser uma vantagem, o pouco peito. Como viajou bastante conheceu outras culturas e  padrões de beleza, assim nunca se incomodou por ter o peito pequeno.

Ela começou a falar sobre algumas mudanças e falou sobre o silicone. Na hora perguntei a ela se ainda estava namorando e me confirmou que sim.

Minha percepção sobre o assunto mudou na hora. Se uma mulher me diz que vai colocar silicone e está sozinha, eu percebo que foi uma decisão dela, mas se tem um Romeu na história desconfio de tudo, de cada vírgula, de cada palavra.

E faço isso baseada na minha fantástica experiência com homens. Eles são doutrinados para pensar que tem poder sobre nossa aparência, acreditam que decidem o que vestimos ou não e que os seduzimos usando a roupa que eles escolhem.
Como não pode mais ser um jogo tão aberto, para não parecer dominante, o discurso mudou, agora Romeus falam mansinho e começam a frase dizendo ''eu te aceito do teu jeito, mas poxa amor, podia ter mais peito ou ser mais magra né?''.

Se eu namorasse hoje os homens que um dia namorei, com certeza pesaria cinquenta quilos, porque algumas vezes sofri a pressão aberta e direta e outras vezes a voz mansinha que me alertava que eu estava engordando, mas sempre era a voz do macho ditando regras sobre minha aparência.

Eles nos veem como bonecas e nós, mulheres, fazíamos isso com nossas bonecas na infância, cortávamos seu cabelo e mudávamos suas roupas, eles fazem a mesma coisa e acham que têm o direito de modificar algumas partes do nosso corpo para satisfazer suas fantasias sexuais.
E não param, se a mulher der uma folga, eles caem matando, começam a buzinar de leve, seja para que  a mulher emagreça ou coloque silicone, mas eles apertam, se aproveitam do desejo criado nas mulheres em querer agradar os homens que amam, essa é a porta do inferno.

Canso de escutar amigas dizendo ''eu não me incomodo em ser gorda ou não ter peito, mas Romeu me diz que se posso melhorar, por que não fazê-lo?''.
É, por que não fazê-lo?

E até onde vamos por isso? É viável deitar em uma mesa, levar anestesia geral, apenas porque Romeu gosta de mulheres com peitos grandes? Eles valem esse risco? E o que ganhamos em troca? Ele vai fazer um implante para aumentar o tamanho do pênis?

Alguma mulher já sugeriu isso ao seu Romeu, que aumente seu pênis?

Nós temos feito muitas coisas por ingênuas, aceitamos outras por ignorância, mas isso tem que acabar, não podemos continuar dessa maneira, sendo controladas por homens e seus caprichos.

E digo uma coisa, já temos conhecimento para reagir, não somos mais as bobas que tinham o acesso a informação negados,  hoje sabemos que vivemos em um emaranhado social onde somos as presas, tudo é voltado para nos caçar.

E não existem palavras doces de Romeu que não venham carregadas de manipulação e controle, ele pode ser ótimo, mas foi educado para conseguir o que quer em cima de uma mulher, se ele quer peitos grandes, ela vai ter peitos grandes.

E todas aquelas histórias que algumas mulheres me contam, como ''ele me dá apoio'' são mentira, parte de uma fantasia, ora, por que não daria apoio se você está fazendo o que ele mandou?

Se você abrir bem os olhos vai perceber que esse apoio só é dado quando é alguma coisa do interesse dele, não do teu.
Romeus podem parecer fofos e prontos para dar apoio, mas apenas estão vendo o que é conveniente ou não, parecer um cara legal é um bom negócio, dá lucro, ficar de fala mansa na orelha da mulher, dizendo que ''enlouqueceria se ela tivesse peitos maiores'', vai dar resultado.

Sou a favor de todas as mudanças físicas que uma mulher queira fazer, é seu corpo, mas cada vez que sei que tem um Romeu na história, fecho a questão. Posso me ver ali, sendo massacrada pelos meus doces namorados, escutando a mesma coisa.

Uma vez um deles me disse ''olha, você é bonita, mas se perdesse peso seria um escândalo''. Outro dizia ''poxa, pra quê se largar desse jeito, tenta uma dietinha, eu te ajudo''.

Ah, mas também namorei os legais, aqueles que comiam pizza comigo, mas o jogo deles era o contrário, adoravam que eu engordasse para que ficasse mais insegura, porque me excesso de peso me deixava insegura, eu não me aceitava, assim ficava na mão deles para ser facilmente manipulada.

Na frente de um homem, qualquer homem, nossa aparência não passa daquelas bonecas de papel, eles acham que podem cortar, tirar e amassar, até se aproximar das doentes fantasias que carregam.

Chega de colocar a culpa neles, somos nós, mulheres, que temos que acordar e cortar todas essas cordas de manipulação. Romeu quer uma namorada magra? Bom, não sou eu, ele que vá procurar outra se isso é tão importante assim. Quer uma namorada com peitos maiores? Que procure, eu não vou viver em um relacionamento onde não me aceitam como sou. E o principal, que me tratem como eu trato, porque jamais disse a nenhum homem para aumentar o pênis e olha que eu tinha motivos para dizer isso, mas sempre respeitei e nunca tratei ninguém como pedaço de carne.
Por cultura, conveniência e estrutura social, os homens não vão mudar, somos nós que temos que colocar a linha do limite.

Não podemos mais aceitar o controle masculino em nossas vidas e corpos, não adianta fazer textão nas redes e depois correr para colocar silicone porque Romeu pediu.

Se a mulher quer mudar sua aparência, colocar silicone, emagrecer, cortar o cabelo, o que for, tem que tirar os óculos cor de rosa e parar para pensar, abrir todas as janelas, jogar todas as possibilidades na mesa e se perguntar de maneira sincera ''é minha vontade ou a discreta pressão do Romeu?''.
Caso a resposta seja a ''discreta pressão do Romeu'' é fim de linha, melhor mudar de amor.

Amor bom é aquele que nos aceita como somos e não quer mudar nada, isso é amor, o resto é um Romeu criado em uma sociedade doente pensando que mulheres são suas bonecas de papel. Tá na hora de colocar fogo nessa ideia. 



Iara De Dupont




quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Quando te vi


Quando te vi não poderia imaginar quem você era, e quem seria na minha vida.
[Não sabia sequer se você seria parte da minha vida]

Te ver, te rever, te conhecer.
Indagar sobre suas preferências, suas crenças e suas opiniões.
Sentir o toque, o cheiro, o arrepio, o gosto.
Descobrir seus medos, seus sonhos, suas angústias e inspirações.


Segredos, confidências e coisas que nunca foram verbalizadas, mas acabam sendo compartilhadas ao cair da noite, ao luar contemplado da varanda ou sob os lençóis.

Nunca te conhecerei completamente.
Nunca conhecerei a mim mesma completamente.
Estamos sempre nos descobrindo, acrescentando de um lado, aparando do outro, reinventando a nós mesmos e as nossas relações. 

Essa é a graça.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Favor confirmar presença

 Ninguém precisa ficar até o final da festa.
 Ás vezes a gente nem queria ter vindo.
 Eu não conheço quase ninguém aqui.
 Ninguém aqui tem nada a ver comigo.
 Talvez esse meu desânimo esteja atrapalhando.

  Quando eu for embora,
  vou sair de fininho, ninguém vai notar.
  "À francesa", sem me despedir, sem chamar atenção.
  Quando repararem (se é que repararem) eu já sai.

  Meu objetivo nem é voltar pra casa; é só, pura e simplesmente, sair daqui.
  Ficar seria sempre a pior opção, e qualquer tempo que eu fiquei foi tempo demais.

  Pode ser que alguns se chateiem.
  Mas essa frustração é passageira.
  Pensa no tempo que tentei ficar.
  Pensa no tempo que fiquei.
  Nunca foi por mim, que esse tempo baste para que se sinta bem.

  Às vezes a gente só não se encaixa.

  Não aguento mais , preciso tomar coragem e ir embora.
  Pensei tempo demais nisso, não é mais questão de ir ou não, é só de quando.

  Tem gente que se mata.
  Não apóio, não incentivo, mas eu entendo.
  Eu admiro, entendo e respeito.
  Tento não julgar.

  Tenho dó só de quem ficou.
  Assim como todo mundo.
  E pavor, de ser quem fica.
  Quero todos comigo até a última canção.

  Mas mesmo assim a festa uma hora termina, não é?!
  Que triste se forçar a sofrer só pra me fazer companhia.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Dislexia criativa

Dos quadros que não terminei
Das palavras que soltei
Do quanto esperei
De quando deixei
De quando cantei
De quando simplesmente dancei
De tanto sentir
Do que se é
Do que compreende
Do que ninguém entende
Do choro
Das dúvidas
Do cansaço
Do riso fácil
Da necessidade de transbordar
De querer tentar
Do que traz a calma
Do que faz silenciar
Das dicotomias
Da vontade de voar
Do que traz vida
Do que faz criar
De simplesmente respirar
Da necessidade de mudar tudo de lugar


terça-feira, 1 de agosto de 2017

Motivação

Há momentos em que fazer arte parece doloroso. Sentimos como se toda a energia que temos estivesse sendo usada para sobreviver, trabalhar para pagar as contas e manter a cabeça funcionando. E nesse esquema de manutenção apenas do que se pensa ser o suficiente, perdemos o impulso de criar. 

Muita gente melhor do que eu já falou sobre motivação. Amanda Palmer e aquele cara de cabelo esquisito que casou com ela dão ótimas dicas relevantes em "A Arte de Pedir" e "Faça Boa Arte". O Henfil fala maravilhosamente bem a respeito de prazos e a necessidade de pressão nesse incrível texto http://intervox.nce.ufrj.br/~elizabet/henfil.htm em que fala da inspiração como um Dobermann correndo atrás dos calcanhares de quem quer produzir.

A verdade é que a vida cobra muito. "Escreva todo dia" se torna uma cobrança absurda. Perguntas de "Como vai o seu romance?" se tornam martírios, quando temos de responder que o abandonamos por falta de tempo. O sucesso alheio parece se tornar opressivo, e a inveja e outros sentimentos ruins crescem como mato em terreno malcuidado. 

Não estou aqui para dar a resposta quanto à motivação como funciona pata todas as pessoas, nem tenho a pretensão de entender como mentes tão diversas funcionam. Mas acho que se há uma dica que eu posso dar, é a mais boba possível: É necessário pular.

Não, pular não é nenhum termo mágico ou super-erudito. É um análogo a "meter as caras" ou o meu favorito" meter o louco". Na minha cabeça, o quanto você progride em algo muitas vezes depende mais da sua disposição de meter o louco do que da sua capacidade técnica, influência ou background. 

O marido da Amanda nos diz para cometer erros fantásticos, Ira Glass nos diz para produzirmos coisas ruins até conseguirmos chegar nas coisas que queremos (na sensacional teoria The Gap: https://vimeo.com/85040589), Amanda nos diz para aceitarmos ajuda, Henfil nos manda encararmos o cachorro preto. O que todas essas pessoas tem em comum, além de serem fantásticos criadores de conteúdo e super respeitados no meio cultural?
Eles conseguiram achar motivação para terminar as coisas deles e expor para o mundo.

Cada um de nós carrega os próprios fardos, as próprias mazelas e os próprios medos. Ninguém pode te dizer que suas dificuldades não são enormes ou que entende sua dor melhor do que você. Mas as pessoas só conseguem te julgar pelo que você produz e mostra a elas. E para isso, é necessário produzir e se motivar para tal. Nem que seja para cuspir de volta no mundo que te dificultou tanto e dizer "Tá aí, porra! Eu terminei".




quinta-feira, 27 de julho de 2017

Todo mundo é artista

Ouvi por esses dias a famosa frase do artista alemão Joseph Beuys “toda pessoa é artista”. Essa ideia soaria absurda para os Mundugumor da Nova Guiné, porque ser artista é uma condição especial para quem nasceu com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Isso pareceu totalmente fortuito e supersticioso? Coisa de tribo não civilizada do outro lado do mundo?

Sim, nascemos todos artistas. Com vontade de criar e expressar nossos sentimentos e ideias. Eu era assim também. Eu experimentava as diferentes linguagens artísticas sem pudor e me divertia muito com isso. A arte alivia nossas almas e nos deixa felizes. Quando brincamos produzimos arte. Mamíferos brincam. É por isso que não nos cansamos de brincar.

Mas como a maioria dos adultos do mundo ocidental eu também não progredi em aptidão artística muito além do nível atingido na infância. Meus desenhos são bem parecidos com aqueles que eu fazia aos nove ou dez anos. Certo dia alguém me falou que eu tinha outras habilidades e que era melhor me concentrar nelas, então sufoquei meus desejos artísticos para conseguir me encaixar no “mundo adulto” do trabalho. Nada mais poderoso do que uma mente convencida de que não pode fazer algo.

Confesso que ainda não consegui desconstruir o mito do artista com talento nato. Em fóruns e grupos de estudantes e artistas, muitos deles ficam irritados quando ouvem coisas do tipo, porque o senso comum simplesmente ignora todo o investimento de tempo e dinheiro para o desenvolvimento de técnicas artísticas.

Gloria - Theodore Ushev
Chega um ponto da nossa vida que somos confrontados com nossos demônios e dívidas do passado. Estou exatamente em cima desse nó e um desejo latente de voltar a usar criatividade para arte tem pulsado dentro de mim. Mas como isso agora? Aquele embaraço constrangedor de “eu não sei, eu não sei fazer nada, tudo o que eu faço é feio”. Não importa. Eu precisava enfrentar e então me matriculei numa oficina de desenho.

No começo, eu escondia meus desenhos com o braço quando o professor se aproximava de mim, mas com o tempo fui perdendo a vergonha porque ele dava o tipo de incentivo que eu necessitava ouvir. Nada como estar num ambiente acolhedor.

Na aula seguinte, contudo, tivemos uma sessão de modelo vivo. Eu estava com medo de parecer muito idiota porque ainda assombrada por essa ideia de que artistas são seres de outra casta. Na minha cabeça uma sessão com modelo vivo só seria permitida para os verdadeiros artistas. Depois que o medo passou, uma vontade enorme de rir surgiu. O modelo lindo, estático como um deus grego em poses clássicas e eu a maior das impostoras! Será que ele pensa que estou retratando-o fielmente? Se ele visse... fiquei um bom tempo com um sorrisinho de canto que sumiu quando consegui me concentrar.

Sim, nascemos todos artistas. Esse medo que temos dos julgamentos alheios, do ridículo é tóxico e paralisante. Finalizo com o pensamento da cantora americana Nina Simone: “liberdade para mim é não ter medo”.

sábado, 22 de julho de 2017

Crianças



Encontram-se no parque. Cada um com seu rebento. A mulher com o filho dela. O homem com a filha dele. Nunca se viram. São as férias de julho e o parque está cheio. Faz sol. As crianças correm pro tanque de areia. Homem e mulher sentam-se no mesmo banco. Conversam.

- Que bom que hoje saiu sol, não?

- Nem me fale... não aguentava mais aquele frio.

(...)

- Eles nunca se viram e parece que já são amigos desde sempre.

- Como? 

- As crianças... parecem que são velhos amigos, mas acabaram de se conhecer.

- Ah, sim, eu vi. Uma graça, né? Meu filho mal viu sua menina e foi logo a convidando pra brincar. 

- É... as crianças são mesmo demais! Minha filha estava lá entretida fazendo outra coisa e mesmo assim aceitou brincar com seu filho. 

- Ah, esse menino é muito sociável. É a capoeira, né, a capoeira estimula bem a socialização. Ele não perde uma aula, toda quinta de manhã, desde que aprendeu a andar. Era uma graça, bebezinho, o berimbau dava dois dele.

- Pois é, nem me fale. Esporte é tudo pra uma criança! Vê só minha menina, com essa gentileza toda, essa paciência, foi tudo o kung fu. Foi mesmo um achado. O kung fu estimula muito isso. Por isso que toda quarta e sábado, ela sai da aula de circo e vai diretinho pro kung fu!

- Circo?

- Sim, malabarismo. É ótimo pra coordenação, pra destreza, pro equilíbrio. E é bom estimular isso desde cedo, né?

- Ah, sim, mas quanto a isso eu não posso me queixar do karatê. Concentração, equilíbrio, disciplina, respeito aos mais velhos, meu menino desenvolveu tudo isso graças ao karatê. Terças e sextas desde os dois anos! Veja que deu resultado, né? Olha a perfeição dos castelinhos de areia dele, olha com que destreza que ele fez aquela pontezinha ali.

- Sim, sim... mas veja só como ela organizou as pazinhas, da maior para a menor, alinhadinhas ao lado dos baldes... aquilo tudo é kumon, minha amiga, é o kumon dando resultado ao vivo e em cores. Tardes de quinta e manhãs de domingo. Com ela não tem pra ninguém na matemática, no raciocínio lógico, além da concentração, destreza, capacidade para lidar com desafios, tudo isso vem junto, né? 

- Ah, mas o meu muleque nem precisou de kumon. O colégio dele é montessoriano, sabe.  Daí é outra coisa. Com dois anos ele já sabia amarrar o sapato com autonomia, se servir sozinho e comer de garfo e faca com desembaraço.

- Está certo, mas você já leu Piajet? O construtivismo é que é a tendência, viu? Antes dos quatro minha menina já sabia as quatro operações matemáticas e conversava em inglês com qualquer um!

- E mandarim ela sabe? Porque saber inglês é meio século vinte, né? O importante agora é dominar o mandarim. A China vai mandar no mundo, meu caro! Potência! Olha só como tem chinês por aí, de cada quatro pessoas no mundo, uma é chinesa. Meu menino aprendeu o mandarim junto com o português! Pronuncia bem cada fonema, fala bem até os mais nasalares, parece um nativo! Até que lhe cairiam bem uns olhinhos puxados com essa pele bronzeada linda que ele tem. Também, né, treinando surf do jeito que ele treina.

- Mas estamos há mais de cem quilômetros do mar!

- Sim, é verdade, mas para que servem os finais de semana, não é mesmo? Meu marido desce com ele pro litoral todo sábado de manhã e só voltam domingo a noite. Este contato com a água é muito importante!

- Ah, sim, com certeza! A natação é um esporte completo! Minha garota aprendeu a nadar antes dos seis meses. Foi ótimo pra ginástica rítmica e pros saltos ornamentais que ela pratica hoje. Medalha de ouro dois anos seguidos nas competições estaduais. Ano que vem ela vai disputar o nacional, daí sim eu quero ver!  Você nem imagina o orgulho! E além do mais, os jogos olímpicos estão logo aí, né?

- Ah, sim, sim, os jogos olímpicos, claro... estão logo aí... meu menino tem grandes chances na esgrima e até mesmo no arco e flecha. Ele treina os dois desde que saiu das fraldas aos oito meses. São esportes maravilhosos para a formação do caráter e para o desenvolvimento da confiança. Não menos importantes que o halterofilismo que ele pratica desde os três, às segundas, logo depois da aula de yoga, que ele faz junto com o coleguinha que ele conheceu no curso de gastronomia. Tudo ótimo pro conhecimento do corpo e pro controle emocional.

- Ele usou fraldas até os oito meses? Minha menina jamais usou fraldas! É muito anti-higiênico. Existem práticas muito mais assépticas e modernas que essa. Não há nada mais moderno na Alemanha e nos Estados Unidos. Você não assiste o Fantástico? É preciso apenas estar atento aos sinais! Ser um bom observador! Não foi você mesmo quem me falou sobre conhecer o próprio corpo?

- Bom, se é uma técnica alemã meu filho deve conhecer, já que fez intercâmbio na Alemanha dos quatro aos cinco anos. Fez um curso de filosofia e retórica para crianças numa escola cristã, porque além do corpo, também é preciso desenvolver o espírito, não é mesmo?

- Minha filha também fez intercâmbio. Ela trabalhou em uma ONG canadense que combate a fome na África!

- Ah, é? E meu filho já foi embaixador da ONU pelos direitos humanos!

- E a minha já ganhou o Nobel da Paz. Duas vezes!

(...)

A tarde avança. Homem e mulher seguem conversando. Ela sobre o filho dela. Ele sobra a filha dele. Conversam muito e com tanta obstinação que por um momento deixam de prestar atenção nas crianças suadas e remelentas, seus filhos, que brincam no tanque de areia do parque. Se a conversa não estivesse assim tão interessante, eles talvez reparassem no momento em que a menina, seis anos, indigna-se com o menino, seis anos, que lhe atirou de caso pensado areia na cara, e lhe responde com um sonoro safanão no meio da fuça. Talvez também reparassem no momento em que o menino, agudamente magoado, lhe devolve o safanão com mais força do que o recebeu e lhe dirige palavrões dos mais cabeludos que aprendeu numa letra de funk. Os dois engalfinham-se na areia manchada de sangue. A tarde cai no parque. É férias. Homem e mulher seguem sentados no banco. Conversam.




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Mais textos  meus podem ser lidos no Em Transe To. Apareçam por lá também!










quinta-feira, 20 de julho de 2017

O feriado do dia do feriado

Nesse post, em meu mês de férias, pensei em começar dizendo que eu gosto de feriado. Que ideia boba. Todo mundo gosta. Eu gosto de tudo o que me deixa longe do serviço. Se até uma apendicite é bem-vinda, que dirá um feriadinho. Há quem pense o mesmo, mas nesse momento me censura por medo de duvidar de que o trabalho talvez não liberte.

O único problema é que não consigo me identificar com os feriados. Apenas aprecio o ócio que eles proporcionam, mas às vezes isso pesa um pouco na consciência.

A maioria das datas comemorativas é religiosa, destas todas são católicas. Pelo menos é a chance de dizer que é feriado “graças a deus”, independente de sua existência ou da crença do interlocutor. Ainda assim me parece bastante arbitrário salpicar exaltações católicas em um estado teoricamente laico.

Há também os feriados que exaltam a pátria. Nesses a coisa complica. Tem a incoerência da Inconfidência, na qual torturaram o Tiradentes para depois transformá-lo em mártir; a independência da república dependente; a proclamação da república que vê sua democracia minguar, etc. Nessas datas sempre existe a exaltação das forças armadas. Aprecio a folga com muito peso na consciência. Por mim poderíamos pegar toda a verba destinada ao exército e gastar tudo em paçoca.

Carnaval é bonito. Não faço ideia do porquê de sua existência, mas não importa. Esse ano, na véspera do que é considerado o marco do real começo de ano do brasileiro, ouvi um sujeito do meu lado no metrô dizendo que não gosta do Carnaval. Lembrei do ano que tive que trabalhar nesse ‘feriado’, sábado, segunda e terça, sem um centavo de hora extra, pois, pasmem, Carnaval não é feriado.

Não resisti ao impulso de agarrar o desconhecido pelo colarinho e gritar que sim, ele gosta de Carnaval. A menos que fosse um empresário que vê a própria empresa parar de produzir ao longo da folia, ele adora o feriado e só terá certeza disso quando tiver que trabalhar no meio do isquindô.

Só consigo me lembrar de duas datas com as quais eu poderia ter maior consideração. O dia da consciência negra, que sequer ganhou status de feriado nacional, muito menos emplacou uma real consciência sobre a luta negra, e o dia do trabalhador, que acabou virando dia do trabalho, afinal quem é esse tal de trabalhador para ganhar um dia só dele, sendo que nem existe dia do empregador?

Para piorar ainda moro no Estado de São Paulo, que resolveu transformar em feriado estadual o dia da ‘revolução de 32’. Eu apoiaria se fosse o dia da vergonha. A elite paulistana em sua histórica vanguarda do atraso se revolta contra a atenção governamental à população mais pobre, toma um couro do governo federal e transforma isso em feriado para criar uma imagem de vitória que não houve.

De repente poderíamos criar uma data específica somente para ser um feriado. De preferência algo como a primeira quinta-feira de determinado mês, para não correr o risco do dia cair justo no domingo. Uma ode à preguiça, dirão alguns; o dia da vagabundagem, acusarão outros; coisa de comunista que não gosta de trabalhar, afirmarão muitos.

Quem sabe um referendo não resolve o impasse? Um programa político explicando à população que ela pode referendar um feriado sem amarras. Nada de cobranças por exaltação à pátria, a deus, ao exército. Apenas um feriado prolongado para ser usado como bem entender. O feriado do dia do feriado.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Descartável

Seu carrinho de supermercado cheio de pertences,
Descartável como seu copo plástico de café em todas as manhãs,
Como seus sentimentos e sonhos, em todas as noites.

Descartável como maquiagem que encobre faces,
Como discursos para serem gravados e enganarem.
Enganam muitos, menos a fome e o frio.

Descartáveis vidas sujas e vazias para muitos,
Mas muito se tem a aprender com suas bagagens.
Os melhores amigos do homem os acompanham,
Mas os “homens” os descartam, os mesmos que se fazem de heróis.

Descartáveis como seu amor reprimido, seu amigo esquecido, seu orgulho ferido.
Descartáveis como sua velocidade aumentada, sua vida reduzida, seu tempo perdido.
Descartáveis como sua arte apagada, sua espera por nada, seu conto de fadas, sua cidade linda.