Cronometrar o
tempo que gasto pra completar as palavras cruzadas e decorar as
capitais dos países da América Central não são nem a ponta do
iceberg das coisas que me dão prazer nesta vida. Até agora eu só
te disse os meus passatempos mais inocentes, os que a gente pode
contar pra qualquer um, mas acho que agora, na altura da conversa em
que estamos, já é hora de te contar sobre aquilo que me dá prazer
de verdade, um prazer físico, sobre aquilo que me faz esticar o
corpo todo de tanto deleite, que me faz querer parar o tempo naquele
momento único, que faz
meu coração querer bater fora do corpo… Sim, sim, senhora… não
existe nada mais prazeroso nesta vida do que enfiar um cotonete
fresquinho, recém-tirado da embalagem, bem lá no fundo do
buraquinho do ouvido! Ah, que delicia… quando aquela pontinha
branca entra bem devagarinho e a gente vai fazendo umas voltinhas com
ela bem devagar e vai enfiando cada vez mais, sempre aos pouquinhos,
até ficar bem lá no fundo e a gente sentir uma coceirinha gostosa
lá dentro, que às vezes até dói um pouco, é verdade, mas é uma
dorzinha gostosa, uma dorzinha na medida certa, que a gente reluta
até o final pra parar de ter. Isso é realmente muito bom, bastante
deleitoso, e dá vontade de fazer todo dia, toda hora… O melhor é
com cotonete mesmo, que tem aquela rigidez natural na haste, sabe, e
também aquela maciez que afaga na ponta. Mas na hora do desespero,
quando o cotonete acaba e a gente não tem outra coisa, ou quando a
gente está num lugar como esse daqui, longe de um cotonete, daí
pode ser qualquer coisa pontiaguda mesmo, de preferência uma boa
tampa de Bic como aquela. As de Bic são as melhores porque têm esse
formatinho arredondado na ponta, perfeitamente anatômico, parece que
fizeram pensando nisso, pensando na coceirinha gostosa que isso é
capaz de fazer no ouvido de alguém. Não faz a massagenzinha que os
cotonetes são capazes de fazer, ah, isso nada consegue igualar, mas
cumprem bem o seu papel e não machucam tanto quanto as pontas de
lápis, os grampos de cabelo ou os clipes desmontados… que cara é
essa, senhora?
(…)
E tem hora, minha amiga, que pra coisa
ficar ainda mais gostosa, eu fico alguns dias sem cutucar. Sim, uns
quatro ou cinco já está ótimo, pra coceirinha ir só aumentando e
a cera ir acumulando. Daí quando enfim a gente enfia o cotonete de
novo lá dentro, a pontinha entra deslizando porque está tudo mais
lubrificado pelo tempo sem mexer. Isso é prazer que não tem igual,
é mais prazer do que prometem os anúncios de acompanhantes no
jornal, tenho certeza disso. O problema é quando dá errado ou
quando a gente exagera um pouco, sabe… porque daí é sofrido.
(…)
Sim, eu já sofri um bocado com esse meu
hobby e posso te contar em detalhes…
(…)
Como não precisa de detalhes? Isso aqui
é uma entrevista de emprego ou o quê?! Sim, tive muitos sofrimentos
com esses azuizinhos e o mais leve deles aconteceu logo que descobri
esse prazer maravilhoso no banheiro da farmácia. Isso mesmo, naquela
época, eu ia escondido no banheiro muitas, muitas vezes por dia
mesmo – tudo por causa dessa brincadeirinha gostosa – e minha
chefe devia achar que eu sofria de uma disenteria violenta, mas o
caso é que eu ainda era bastante inexperiente nisso e girei tantas
vezes e com tanta vontade o cotonete dentro lá do canalzinho, que
quando fui tirar, só veio o palito. Sim, eu estava lá escondido no
banheiro, completamente surdo de um ouvido e com um algodão xuxado
lá dentro. E nada que eu fizesse conseguia tirar aquele algodão
dali. Eu tive que passar o dia todo sem entender o que os clientes
falavam, pedindo pra que repetissem tudo e, claro, andando meio de
lado pra ninguém reparar que eu tinha um algodão no ouvido e que
devia parecer muito com um cadáver recém-promovido ao mundo dos
mortos.
(…)
Ai, ai, senhora… aquilo só foi sair
em minha casa, mas pra isso tive que contar pra minha avó, que já
estava achando muito estranho eu estar mais surdo do que ela. Daí
ela me ajudou com uma pinça e me fez prometer que nunca mais eu ia
usar cotonetes e que ia limpar os ouvidos apenas com a ponta úmida
das toalhas, que estava mais do que suficiente e blá, blá, blá,
que um dia eu ainda ia furar o tímpano e pegar uma infecção
lascada e be be bé e essas coisas todas que falam todas as avós que
querem nos privar dos verdadeiros prazeres da vida. Mas o pior é que
a velhinha estava certa, desgraçadamente certa. É incrível isso,
mas tudo o que eu gosto nesta vida é ilegal, é imoral ou me dá
infecção no ouvido.
(…)
Daí
que ter infecção no ouvido virou uma rotina em minha vida, já
foram três nos últimos cinco, seis anos. E não queira a senhora
ter uma infecção de ouvido, ainda mais depois de perder a linha e
machucar tanto o buraquinho com as coisas pontudas e não
necessariamente limpas que há nesta vida. É uma dor de outro mundo,
uma dor que faz a gente repensar se tanto prazer vale a pena. É uma
dor que faz a gente prometer sempre que nunca mais vai usar cotonete
e que vai seguir todas as recomendações higiênicas que sua
prudente avó já lhe ensinou. Até que um dia a dor passa, até que
um dia depois de tomar uma cartela inteira de antibióticos e todos
os analgésicos diferentes que encontra pela frente, a dor passa.
Sim, e também você para de vazar pelo ouvido e de sujar todas as
fronhas da casa com aquele líquido amarelo avermelhado que nunca
imaginou que seu corpo produzia. E quando até mesmo essa sensação
de mijar pelo ouvido passa, quando tudo volta ao normal, a gente
imediatamente esquece tudo e começa a desejar por aquelas
hastezinhas novamente. E mesmo que você resolva se boicotar e não
comprar mais cotonetes, pra não ter que ter isso tão à disposição,
seus olhos te traem e começam a detectar todos os objetos minimante
pontiagudos e finos o suficiente pra que caibam em seu ouvido. Sim,
todo objeto pontiagudo começa a ficar bem interessante e daí começa
tudo de novo, até a próxima infecção dos infernos. Porque sim,
senhora, ela certamente virá…
*Trecho de "Curriculum Vitae", meu próximo livro, a ser lançado em breve pela Editora Patuá.
Maravilhoso, Felipe. Dei muita risada, meu amigo. Vou adquirir seu livro "Curriculum Vitae". E assim que passar esta pandemia, quero seu autógrafo. Beijo em seu coração.
ResponderExcluir