domingo, 24 de maio de 2020

Recomeços

Ela acordou, sentou-se na cama com pouca coragem de começar outro dia. Olhou para a janela fechada e viu a luz que passava pelas frestas, invadindo o quarto sem ser convidada. Em questão de segundos todas as demandas diárias passaram como um filme em sua mente, desencorajando-a ainda mais. Ao mesmo tempo, enquanto olhava a janela, sentiu certa satisfação pessoal pelo potencial poder que se figurava à sua frente naquele momento “não preciso abrir, eu decido o que entra ou não em minha casa”.

Assim, decidiu que naquele dia manteria todas as janelas fechadas. Tomou seu café, assistiu o noticiário, cumpriu seus deveres com o trabalho, fez um bom almoço, escutou música por algumas horas, preparou um chá no fim da tarde, e à noite, preparou o jantar, tomou um vinho, um banho e se deitou. “Amanhã será melhor”.

Na manhã seguinte, a luz do dia precipitou-se por entre as frestas da janela, e mais uma vez ela decidiu que não a deixaria entrar. E assim se foram dois, três, quatro dias, uma semana, um mês, um ano, ou vários deles, já não se lembrava. As janelas permaneceram fechadas.

A vida passou repetida, os mesmos momentos, o isolamento, o resguardo, as tristezas abafadas, os fracassos engavetados, o medo de amanhecer no dia seguinte com o propósito de abrir as janelas, ser melhor do que no dia anterior e fracassar. As janelas fechadas a poupavam de tudo isso, poderia ser ela com ela mesma, fazendo planos imaginários, travando diálogos encorajadores, realizando tudo o que sonhava, sem precisar se preocupar com o que vinha junto com toda aquela luz dos dias que se passavam lá fora.

Mas nada é imutável.

Certo dia acordou, sem saber precisar há quanto tempo as janelas estavam fechadas. Olhou-se no espelho da penteadeira é só então sentiu que havia envelhecido ali, no escuro, sob as luzes artificiais. Aproximou-se da janela, passou os dedos sobre a madeira já empoeirada, segurou a tranca e a abriu apenas um pouco. Um leve rangido ecoou  e ela sentiu o ar muito frio e úmido invadir seu quarto e tocar seu rosto. Teve medo. Impulsivamente bateu a janela e voltou a trancá-la com toda a força. 

Chovia demais lá fora, não parecia seguro. Amanhã tentaria de novo.

Um comentário:

  1. Deixa o sol entrar! Deixa a chuva molhar!
    Me sinto um pouco assim com relação ao vírus... Não em abrir janelas, mas em abrir as portas da minha casa para as pessoas. Por enquanto, não as deixo entrar, mas levará quanto tempo?

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