Claro que não me distanciei em absoluto disso, pois o trabalho que escolhi, cientista política e pesquisadora, oferece oportunidades ímpares para momentos de reflexão e posterior escrita, o que acaba por me aproximar muito de mim mesma. E foi num destes momentos, como tantos outros na vida, em que somos surpreendidos por insights que trazem em si o poder de gerar sementes a serem cultivadas (ou não) que a ideia central deste texto surgiu. A princípio como um pensamento que me rondou por dias, depois como um texto corrido no celular, daqueles que a gente escreve no momento que vem a inspiração. Sinta-se livre para entender como achar melhor, mas me deixa muito confortável interpretar este ocorrido como uma crônica da vida real.
Um dia, discutindo com meu antigo grupo de trabalho, em uma pesquisa sobre a saúde de adolescentes e jovens, acabamos nos deparando com algumas questões surgidas de uma discussão com os jovens, em que foram abordados, entre outras questões, os incômodos da famigerada pergunta “O que você vai ser quando crescer”, ao que um/a deles/as pontuou algo do tipo “Como assim o que eu quero ser? Eu JÁ não sou alguém?”. Essa observação tão profunda da existência (embora ele ou ela não tenha classificado sua frase como uma) foi suficiente para levantarmos, em um grupo de profissionais tão sensíveis ao impacto dessa colocação, questões muito mais abstratas sobre “ser” que fogem completamente do nosso raciocínio usual, e no meu caso em particular, de alguém que busca o melhor desenho para políticas públicas. Lembrei imediatamente do conto “O Espelho” de Machado de Assis, que havia lido na minha adolescência, embora naquele momento eu sequer lembrasse o título para dizer, pois ele havia ficado entre aquelas memórias de escritora que foram se apagando ao longo do tempo.
O meu comentário, naquele momento do calor da discussão, parecia fazer todo o sentido, pois lembrava com toda a clareza do mundo que o tal conto tratava da história de um “não me lembro qual patente” (hoje sei que era alferes da Guarda Nacional) que não podia mais se reconhecer sem a farda quando se olhava no espelho. O momento passou, a ideia desapareceu na pressa da vida e não muito tempo depois, na frenética e superficial visualização de posts da timeline do Facebook, eis que surge o título do conto, que havia sido adaptado a uma peça de teatro que fazia ali sua divulgação, e eu com tempo para sanar as dúvidas, corri até a estante da sala para buscar na coleção de livros do Machado - que meu pai com tanto orgulho fez para mim e minhas irmãs - o livro Papéis Avulsos II, em que se encontra o tal conto.
Confesso que reli muito mais pra afagar meu ego - pois havia ficado maravilhada por ter tão oportunamente ressuscitado o Jacobina (esse é o nome do personagem), naquele momento da discussão e precisava ter certeza de que não havia dito nenhuma bobagem - do que propriamente pelo prazer de reler Machado depois de tantos anos esquecido naquela prateleira. Ingenuidade! Não porque a história não se trata do que eu achava que fosse, de fato é, mas porque não foi eu que reli o conto, e sim ele que me releu. Parei para pensar naquele diálogo mudo que se dava na transcendência dos séculos entre o Machado e aquele/a jovem da pesquisa e percebi a quantidade de papéis e títulos que fui adquirindo ao longo da vida e que, de alguma forma, foram obscurecendo minha imagem sem a “farda”. Mas então, o que sou?
Qualquer apresentação que eu faça de mim mesma vem sempre iniciada com as minhas funções sociais, seja em que dimensão elas se encontrem mas, sobretudo, aquelas que pertencem ao mundo do trabalho: meus títulos e onde foram conseguidos, o que faço, desde quando, o que já publiquei. Mas é isso mesmo o que me define? O mais complexo quando se atenta a isso é continuar e tocar em frente sem a devida reflexão de sua totalidade depois de um mea culpa, pois ficou evidente que em um dado momento eu deixei de ser o que sou para me tornar o que estou.
Indo mais a fundo, percebo que isso realmente está impregnado em todos os setores da vida: a gente se torna o romance que fracassou, o montante de dinheiro que temos no banco, o carro que dirigimos, os ambientes que frequentamos, etc, etc, etc. Obviamente que acredito que nossa compreensão e interpretação da vida, do que é bom e o que não é, por exemplo, são moldadas de acordo com nossas experiências, sem o que seríamos incapazes de nos posicionar e nos mostrarmos ao mundo, ou mesmo tomar decisões futuras e nos auto preservar. Mas, para além disso, quando nos despimos de tudo, muitas vezes fica a sensação de que não sobrou nada, já que nos acostumamos a viver na superfície e não na essência.
Mas, retomando a razão que me fez começar dizendo que não escrevo há muito tempo, quando reli o conto do Machado percebi duas coisas muito importantes. A primeira é que ele sempre foi uma inspiração muito forte, mas tão forte, que durante muito tempo, lá na metade dos anos 1990 e início de 2000 eu acreditava que eu poderia escrever como ele, exatamente como ele, com uma linguagem própria do seu tempo e assim me tornar uma ótima escritora. A segunda e mais importante para o contexto, é que escrever sempre esteve na minha essência, ainda que sejam meus atuais textos acadêmicos, e considero que este seja apenas um dos diversos traços do meu "eu real" que andou adormecido e, além disso, tendo a acreditar que a grande arte da vida é encontrar e despertar todos eles, já que estão invisíveis na imagem que o espelho nos devolve todos os dias. Por isso, acho justo utilizar essa “mini-crônica da vida real” para prestar minhas sinceras homenagens ao Machado que me influenciou e continua influenciando até hoje, além de convidá-los/as a ler o referido conto, e também provocar os que lerem este texto a refletir sobre o que SOMOS quando não ESTAMOS sendo nós mesmos/as.
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